A hora sua - o projecto

Em 1996 pediram-me para visitar e fotografar o Museu do Instituto de Medicina Legal no Porto, para ilustrar um dos trabalhos que integrava a primeira revista Camaleão, cujo tema era a morte. Ao fotografar aqueles corpos conservados em formol, dentro de frascos de vidro, ao contrário do medo, da repugnância, ou pelo menos da incomodidade de que estava à espera, a minha sensação mais forte foi de uma profunda emoção estética, perante a beleza e a harmonia daquelas peças, como se tratasse de esculturas ou objectos de Arte, criações humanas onde o homem pretendesse copiar os Deuses. Confesso que essa sensação apesar de agradável me perturbou de seguida, pois contrariava tudo aquilo que eu esperaria sentir.

Mas essa não incomodidade levantou outras questões, incomodou-me. Até então pensava que o meu distanciamento da morte e dos seus rituais resultava de uma atitude racional/materialista/progressista que se traduzia em recusar as superstições e crendices associadas à morte. A incomodidade, mesmo medo irracional, que a morte, os seus lugares e instrumentos me provocavam, interpretava-as como resquícios de uma educação e prática católicas da minha infância e adolescência. Foi essa incomodidade e esse medo residuais que me fizeram a princípio recear a sessão fotográfica que me pediram para realizar no museu do Instituto. E foi o facto de não ter sentido nem medo nem incomodidade ao fotografar que me fez pela primeira vez reflectir se a minha atitude seria tão racional e progressista ou, pelo contrário, um mero reflexo de uma atitude banalizada/generalizada da sociedade contemporânea perante a morte. Muitas vezes temos alguma coisa à nossa frente, mas como sempre lá esteve não nos chama a atenção. Transforma-se numa espécie de fantasma bem-educado do poema da Natália Correia e, curiosamente, só quando essa coisa desaparece conseguimos observá-la e interrogarmo-nos acerca dela, tal como só a noite nos permitiu aproximar do sol e das estrelas e compreender o universo.

O livro História da Morte no Ocidente de Philippe Ariés, recomendado por uma amiga, permitiu-me compreender que a atitude do mundo ocidental em relação à morte se modificara muito ao longo do tempo. Desde a Antiguidade até ao nosso século as modificações processaram-se sempre muito lentamente e, por isso, não temos consciência delas porque ultrapassam a nossa capacidade de memória colectiva. E nos nossos dias apesar de se assistir a modificações profundas e muito mais rápidas temos todavia tendência a aceitar como eternos e indiscutíveis atitudes e comportamentos que são por vezes bastante recentes. Essas transformações na atitude dominante em relação à morte estão associadas, como seria natural, a modificações sociais, culturais, religiosas, económicas e políticas. Desde o início da era cristã até ao fim da Idade média, período que Philippe Ariés no seu estudo designa por período da morte domesticada, a morte era aceite com inteira naturalidade: a morte era familiar, próxima; o homem aceitava-a como uma das grandes leis da espécie e não pensava nem em fugir-lhe nem em a exaltar. Mas desde então até aos nossos dias, em que a morte provoca medo, a ponto de nem nos atrevermos a pronunciar-lhe o nome, muita coisa mudou. No fim da Idade Média a morte adquire um sentido individual que não tinha até então: é o período que no estudo referido Philippe Ariés designa por a morte de si próprio; é então na morte que o homem se descobre e adquire a verdadeira consciência da sua identidade: os túmulos passam a ser identificados, surgem os testamentos como expressão das últimas vontades do moribundo. A partir do século XVIII a atitude modifica-se: a morte é exaltada, dramatizada, impressionante e dominadora. Para os românticos o que conta é sobretudo a morte do outro. Aparecem as tradições de visitas aos cemitérios. Durante o romantismo podem-se encontrar passagens literárias como esta, citada no referido estudo, “ Conversámos - nota o rapaz no seu diário intimo - durante uma hora sobre religião, sobre a imortalidade e sobre a morte que seria doce nestes belos jardins - e acrescentava - Vou morrer jovem, sempre o desejei” ; o seu desejo seria atendido e a sua mulher descreve o seu último suspiro “...os seus olhos, já fixos, tinham-se voltado para mim... e eu, a sua mulher, senti aquilo que jamais pudera imaginar, senti que a morte era felicidade” ou ainda, numa outra passagem de um outro autor, a heroína afirma “ Morrer é uma recompensa, pois é o céu... A ideia favorita de toda a minha vida é a morte que sempre me fez sorrir... Para mim nunca houve nada que tornasse lúgubre a palavra morte”. Como uma passagem destas nos parece hoje mórbida, doentia. No século XX a atitude perante a morte vai alterar-se completamente. A morte, outrora natural e sempre presente, vai desvanecer-se e desaparecer. Torna-se vergonhosa e interdita. Para alguns autores o tabu da morte nos nossos tempos substitui o tabu sexual de outros tempos.  O incómodo provocado pela fealdade da morte, perturbando uma vida que tem de ser sempre feliz, ou pelo menos parecê-lo numa sociedade de consumo, é intolerável. Assim a morte acontece de preferência longe dos familiares e dos amigos, as crianças são afastadas; um desgosto demasiado visível já não inspira piedade mas repugnância: é considerado mórbido! Nas palavras de Ariés no estudo referido “o luto solitário e envergonhado é o único recurso, como uma espécie de masturbação...”. Mas, na opinião de Ariés esta nova atitude não resulta de maneira nenhuma de uma indiferença em relação aos mortos, podendo-se mesmo supor que o recalcamento do desgosto que a sociedade hoje impõe torna muito mais difícil a perda do ente querido e tornam muito mais difícil o nosso convívio com a morte.

Associei mais tarde às imagens que tinha feito no Instituto de Medicina Legal outras, de árvores mortas, a maioria queimada durante os violentos fogos estivais. São fotografias que fui fazendo ao longo de alguns anos, nas minhas visitas a Trás-os-Montes e onde, mais uma vez, a morte realça a beleza da vida: consagra-a.

Surgiu depois naturalmente a ideia/projecto de associar as imagens que obtive no IML a um conjunto de passagens literárias que ilustrassem de alguma forma esta mudança de atitude perante a morte ao longo do tempo na literatura portuguesa. Era uma pesquisa pessoal/sentimental, muito subjectiva e sem quaisquer pretensões antológicas, procurando dar algumas respostas ou somar algumas perguntas à minha perplexidade perante emoções que não esperava, mas que senti naquele dia, perante a beleza crua e profunda daquelas imagens. A minha amiga Regina Guimarães aceitou ser cúmplice desse projecto. Fez a selecção de pequenos textos literários que vão da idade média aos nossos dias.

 

Renato Roque 1999