O que resta da Arte


Extractos de uma entrevista de Reborn Bramble a Renato Roque

Reborn Bramble - ' O que resta da Arte' porquê?

Renato Roque - Para lhe responder a essa pergunta terei de lhe contar uma história, uma história que está na base desta exposição. Há dois anos, em Milão, vi anunciada uma exposição do artista alemão Joseph Beuys. Confesso que, já tendo ouvido falar dele, nunca tinha tido até então a oportunidade de ver qualquer trabalho seu. Decidi, por isso, visitar a exposição que estava instalada num edifício pertencente à Universidade. Ao entrar no edifício, passei por um pátio interior, um desses pátios tão comuns em edifícios públicos do século XIX. Vi então que o edifício estava a ser restaurado e que por isso grande parte das paredes interiores estavam cobertas por taipais de protecção. Mas esses taipais estavam cobertos por pinturas, graffitis, por vezes em camadas múltiplas, em certos casos com as tábuas já fora da ordem inicial em que a pintura tinha sido feita, e chamaram imediatamente a minha atenção. Retirei do saco a minha âncora do tempo, como chamo à minha máquina fotográfica, e fotografei, ou seja, lancei a âncora àqueles momentos e àquelas imagens. Com certeza os taipais já não existem e, quem sabe, se eu os não tivesse fotografado, talvez tivessem também para sempre desaparecido da minha e de outras memórias. Não sei quanto tempo andei à volta daqueles muros, pois perdi a noção do tempo. Por fim, voltando a mim, levantei âncoras e decidi então, finalmente, visitar a exposição do Beuys. Entrei, olhei surpreendido os primeiros trabalhos e dei rapidamente a volta à sala. Ao chegar novamente à porta de entrada, ainda olhei uma última vez para trás, como que envergonhado, mas resignado, saí. À saída ainda me aproximei mais uma vez dos taipais e então, satisfeito comigo mesmo, afastei-me e saí do edifício. São algumas das imagens que na altura obtive que apresento neste trabalho a que resolvi chamar ' O que resta da Arte', pois sugerem um conjunto de interrogações sobre a Arte nos nossos dias.

R.B. - Com essa pequena história pretende contestar os caminhos percorridos pela Arte nos últimos anos e, nomeadamente, o trabalho de Joseph Beuys?

R.R. - Claro que não! Aliás, posteriormente, tive a curiosidade de conhecer um pouco melhor o Beuys e o seu trabalho, e aquilo que li faz-me até ter admiração pelo homem, cidadão e artista Joseph Beuys. A história que serve de pretexto a esta exposição poderia ter acontecido com outro artista. Beuys foi apenas um catalisador daquilo que realmente aconteceu. Admito a hipótese de alguém poder ter uma experiência idêntica quando visitar a minha exposição ' O que resta da Arte'. Digo mais, ficaria feliz se tal acontecesse, pois curiosamente tal significaria que a minha história teria sido perfeitamente compreendida.

R.B. - Mas esta exposição deixa pelo menos no ar um conjunto de interrogações e perplexidades?

R.R - Isso sim! Com esta exposição pretendo interrogar-me e interrogar quem me possa responder, sobre o que é a Arte nos nossos dias, onde é que ela está, quais as suas fronteiras, qual o papel que desempenha hoje. Algumas perguntas surgem quase imediatamente da história que contei, por exemplo: a exposição do Beuys era Arte apesar da forma como eu reagi a ela? Os taipais pintados e repintados, suponho por estudantes durante as obras de restauro, eram Arte? E as fotografias que eu fiz? E as imagens que imprimi e que mostro nesta exposição, neste caso inclusive, recorrendo a processos informáticos?

R.B. - Qual é a sua opinião?

R.R. - Eu tenho uma grande dificuldade em traçar fronteiras bem nítidas, talvez até porque elas não existam. Sinto no entanto que terá de existir na Arte algo de sublime, de fantástico, de descoberta, que tem a ver com o acto de criação, ou seja com a tentativa humana de imitação de Deus. Esse Sublime poderá sentir-se ao contemplar uma obra de arte, mas sente-se sobretudo durante o próprio acto de criar. Ora muitas vezes este Sublime perde-se numa sociedade que consome o objecto artístico como outro qualquer produto. A Arte passa então a ser feita para ser vendida, comprada, consumida e mais importante do que a própria Arte são então todas essas engrenagens que tornam possível o negócio. Ao mesmo tempo a Arte elitizou-se e afastou-se das pessoas. Parece-me que talvez a única resposta à Arte de consumo, que nos oferecem, e da qual nos pretendem distanciar, seja uma Arte aberta à participação de todos, deselitizada, feita, manipulada por todos, ou pelo menos por um grande número de pessoas. A Arte não deverá ser privilégio dos Artistas e dos críticos de Arte, acessível para uma mera aceitação passiva, ou consumo, pelas restantes pessoas. Por isso os taipais foram mais importantes para mim do que a exposição do Beuys. E o curioso é que o trabalho do Beuys, personagem (in)visível em toda esta história, parece também apontar um pouco nesta direcção!

R.B. - Falou em Sublime, associado à Arte. Mas quem define esse Sublime?

R.R. - Creio que bastará haver alguém que sinta esse Sublime para se poder falar de Arte, mesmo se só o próprio autor. Por isso, considero ser o papel desempenhado pelo acto de criação na história que lhe contei, talvez o seu aspecto mais interessante.

R.B. - É portanto totalmente subjectivo?

R.R. - É, mas o importante para mim é eu próprio poder senti-lo. Por isso, repito, o importante para mim naquele dia foram as imagens dos taipais que fotografei e não a exposição do Joseph Beuys. Talvez apenas o tempo e a história se encarreguem de limar um pouco as arestas e de, porventura, encontrar a universalidade de algum desse Sublime.

R:B. - Falou em Arte deselitizada. Por isso a Fotografia? Por ser uma técnica banalizada, acessível a todos?

R.R. - Exactamente! Eu costumo muitas vezes dizer que me não considero um fotógrafo. Para mim o importante não é a Fotografia, mas sim as fotografias ou, se quiser, num sentido mais lato, as imagens. Eu recorri à Fotografia apenas porque ela estava ali à minha beira, disponível. Escrevi um dia que peguei na Fotografia e a meti ao bolso, pretendendo com isso realçar o lado utilitário da minha apropriação desta forma de expressão. Aliás a Fotografia, como forma de expressão, tem essa característica que me interessa: toda a gente faz ou já fez fotografia, ou pelo menos tem alguém próximo que faz ou já fez fotografia. Curiosamente, algo de semelhante se passou , em certa medida, com a escrita. Peguei na escrita e meti-a no outro bolso. No caso desta exposição, ao recorrer pela primeira vez à digitalização das imagens para as imprimir numa impressora de jacto de tinta, em vez de fazer eu mesmo a impressão em papel fotográfico, torno o processo ainda menos dependente de qualquer conhecimento técnico.

R.B. - Acha portanto que as características da Fotografia tornam possível a tal Arte aberta a uma participação efectiva de todos?

R.R. - Sim, e creio ser essa uma das razões por que a Fotografia é considerada em alguns meios como uma forma de arte menor. Mas isso também cria, por isso, algumas dificuldades. É por exemplo curioso o interesse manifestado pela maioria das pessoas nos aspectos técnicos, na forma como se obtiveram as imagens, no tipo de lentes utilizadas, no motivo fotografado, em vez de nas imagens em si. Ora as imagens a partir do momento em que são aprisionadas passam a ter vida própria e a contar uma história que nelas passa a estar encerrada, fora da realidade anterior.

R.B. - Uma outra questão! Os espelhos aparecem em quase todos os trabalhos anteriores e também no texto ' O que resta da Arte'. Que são esses espelhos?

R.R. - É verdade, o espelho é uma das minhas palavras mágicas. Tudo começou com a exposição "Entre dois espelhos a 10º". 10º, porque entre dois espelhos a 10º formam-se 35 imagens, ou seja, teremos no total 36 eus, precisamente o número de fotografias num rolo fotográfico. Depois os espelhos fecham-se até se sobreporem à meia-noite na exposição seguinte "Dez graus para a meia-noite". Seguem-se "Novos espelhos" e o livro "Espelhos". Mesmo nos trabalhos onde os espelhos não aparecem de uma forma explícita, aparecem de uma forma implícita.. Porquê? Bem, antes do mais toda a fotografia é um espelho mágico da realidade, mas adquirindo vida própria a partir do momento em que a imagem é fixada nos sais de prata. Mas, no meu caso, a palavra espelho aparece igualmente porque eu sinto que cada imagem é também um pouco de mim próprio, como se de alguma forma eu lhe passasse alguns dos meus genes ou das minhas memórias. Por isso nalgumas das exposições anteriores aparecem explicitamente imagens a que eu chamo auto-retratos.

R.B. - Para terminar, restará afinal ainda alguma coisa à Arte?

R.R. - Apesar de sentir que vivemos uma época de alguma confusão, em que alguns caminhos conduziram a becos sem saída, parece-me que, em todos eles, como diz o velho guardião do palácio da Arte, será possível ver a Arte, e sermos de novo encantados por Ela, se formos capazes disso.

© Renato Roque 1997


Notas:

Última actualização = 17/03/97