Portugal não é
um país de poetas!

Rui Ângelo Araújo


Publicado também em Eito Fora


Disseram-lhes

Portugal é um país de poetas!

e acreditaram. Riparam dos blocos de notas e vai de fazer odes ao vento, sonetos à vizinha, quadras às berças, versos a tudo o que mexa. À força de tanto se repetir o infeliz e incompreendido slogan, o português passou a acreditar que a veia poética lhe vem de nascença juntamente com a artéria aorta e o sistema linfático. Por isso se diz que o português é poeta por predestinação.1

Se houvesse estatísticas sobre o assunto veríamos como, à hora que escrevo, meio país — o mesmo país que tem os índices de produtividade mais baixos da Europa — está ocupado a engendrar uma rima. Ele é o juiz no tribunal a medir a métrica duns alexandrinos no meio dumas alegações finais; ele é o trolha a acertar a tremedeira do martelo pneumático pelo ritmo dumas quadras lentas; ele é o funcionário público a tentar pela centésima vez rematar um soneto no verso de requerimentos e formulários; ele é a doméstica lavando em lágrimas uma amorosa prosa poética junto a uma adiada celha de roupa.... A verdade é que neste país não se trabalha — verseja-se.

Uma boa parte dos males que assolam a pátria vem dessa crença disparatada na poética lusa alma. Em rigor, aquilo que os vates nacionais tomam por um louvor patriótico não passa duma amarga constatação. A expressão

Portugal é um país de poetas!

tem um tom desiludido, descrente, e quem a ouve devia distinguir que poetas, ali, quer dizer tolos, ou coisa pior. A expressão

Portugal é um país de poetas!

não é a evocação da nossa arte viçosa — é o epitáfio do nosso cadáver viscoso. Ou alguém pode estar feliz quando um povo inteiro foge do trabalho para a versalhada, recua da competência para a rima interpolada, troca o saber pela tónica na terceira sílaba, abomina a ciência a favor do ditongo ão, recusa a literatura porque... escreve?

Eis a triste realidade: Portugal não lê porque está demasiado ocupado — a escrever.

Dirão que exagero, que são poucos aqueles que escrevem. Poucos, senhores? Em séculos de império, Roma e Grécia não nos deram mais do que um punhado de autores, mas hoje em Portugal não há aldeia que não anuncie o seu poeta popular, que não erija estátuas ao seu vate, não há jornal local (e são muitos!) que não traga poetas aos molhos, prosadores às carradas, não há vila que não publique o seu bardo. Chegámos ao cúmulo de haver mais edições que leitores. São às toneladas as publicações, mas, não fora a função decorativa dos livros, as editoras abririam falência.

O português não lê um livro — mas acha-se capaz de escrever cinco. E, mais grave, fá-lo. Os nossos jovens, antes de folhear um livro, sonham ser escritores, antes de ler uma página, escrevem dez, antes de terem vergonha do que escreveram — publicam-no.

O poeta popular leva-se a sério — não há aí mal nenhum. Mas, analfabetos com responsabilidades, levam-no a sério — e temos obra no prelo.

O português comove-se, chora pela infância, pela família, pelos amigos, pela terra que deixou, por tudo e por nada, e, em vez de derramar lágrimas abundantes pelos cantos da casa, verte prosa lamechas em folhas A4 — e publica-a.

Mais do que a América de Bush, é a lírica portuguesa que compromete o futuro do planeta. Como um fogo que arde sem se ver, o português, que devia estar a ler livros, vai publicando — e derrubando florestas. O buraco do ozono não é nada comparado com o consumo de papel dos poetas e prosadores portugueses. A bem das gerações vindouras, devia haver uma cimeira de Quioto para reduzir as cotas da publicação em Portugal. (Notem como publicação rima com poluição...)

Os poetas populares já eram os maître à penser nacionais. O ódio ao intelectual, ao exercício mental, alcandorava-os ao Olimpo das letras, a democratização das tipografias fez deles autores de culto. A televisão, monopolizando as cabeças e o pouco que têm dentro, promoveu um novo autor: o fast food da prosa, o autor das massas que vão à livraria como, sei lá, ao McDonald's. Por fim, os reality shows trazem a ideia mais temerosa: todos podemos ser famosos, logo todos podemos escrever e publicar livros...

Antes que em cada português desperte um best-seller, proponho que a partir de hoje a expressão que tudo permite

Portugal é um país de poetas!

seja substituída pela mais criteriosa divisa

Portugal é um país de patetas!

A favor das árvores do mundo...


Notas:
1 Pela mesma crença na predestinação, na inevitabilidade do destino, é que o ensino nacional caminha a largos passos para que o diploma de 9.º ano seja um anexo da certidão de baptismo. O que não se poupava com isso...


ruiaraujo@mail.com


Jul.01