Renato Roque: Do retrato enquanto processo de reconhecimento da identidade e dissolução do sujeito

João Fernandes - 2009

 

Todos nós já vivemos momentos em que julgamos reconhecer um rosto familiar e nos enganamos. Estamos na rua, num restaurante, num transporte público, e o rosto de alguém associa-se a um rosto que conhecemos, quando, de súbito, concluímos que, afinal, essa não era a pessoa que julgávamos poder identificar. Desfeito o engano, esquecemos esse instante em que um conjunto de complexas operações de percepção e associação cognitiva nos confrontou com as semelhanças e as diferenças detectáveis entre o rosto desconhecido e esse retrato que pensáramos reconhecer dentro da biblioteca mental dos retratos das pessoas nossas conhecidas.

Qualquer retrato pressupõe uma identidade ou um processo de identificação. Na história da arte, o retrato foi praticado durante séculos como uma técnica ao serviço do reconhecimento da identidade ou da legitimação de quem tinha o poder para se fazer retratar ou para encomendar o retrato de outra pessoa. De faraós a deuses, dos reis e príncipes a papas e a burgueses abastados, os museus de todo o mundo ilustram uma história de poderes políticos e económicos cuja dimensão simbólica converge nos retratos que conservam. No entanto, os artistas que executavam esses retratos sempre aplicaram também a sua competência técnica de execução a figuras mais ou menos anónimas que não tinham o poder da encomenda, mas que lhes permitiam exercitar a radicalidade de um programa artístico onde a arte sempre se deixou contaminar pela vida, seja a partir da sua representação, seja a partir da sua interpretação e transformação. A par da família real espanhola, Velasquez deixa-nos uma galeria impressionante de retratos dos anões e bufões que povoavam a corte filipina. Flamengos e italianos tinham retratado camponeses nas figuras de santos que acompanhavam frequentes vezes os retratos dos encomendadores de um quadro. O auto-retrato foi igualmente um género praticado como expressão dessa relação com a vida, com as suas mudanças e a sua fugacidade que parecem contradizer a própria natureza de registo que esse auto-retrato poderá documentar. Rembrandt, com os seus auto-retratos realizados ao longo de toda uma vida, será de tal um claro exemplo.

Com o aparecimento da fotografia, surge uma real democratização do retrato. Ao mesmo tempo que todos passam a ter a possibilidade de terem o seu retrato, também todos passarão a ser identificáveis por um retrato. Surgem os arquivos de identificação através dos quais todos os países irão cadastrar os seus cidadãos. Estes arquivos são uma evidência do retrato enquanto condição da identidade no seu confronto com a alteridade. Todos são um no conjunto de todos os outros. A similitude do retrato em relação ao retratado é a condição do processo de identificação. No entanto, a arte do século XX, logo a partir dos primeiros Modernismos, nos anos 10 e 20, assumirá como condição da sua revolução estética e conceptual o desmentido da condição aristotélica da representação. Uma grande parte da história da arte do século XX ocupa-se da dissolução do sujeito e da crise da representação que a interrogação da realidade e da condição desse mesmo sujeito poderão pressupor, a partir do momento em que qualquer retrato não será mais do que um espelho superficial, quando conhecida a relevância do inconsciente que a investigação psicanalítica irá revelar. A heteronímia pessoana ou os versos de Mário de Sá-Carneiro “Eu não sou eu nem sou o outro,/Sou qualquer coisa de intermédio” (…) são exemplo dessa dissolução do sujeito que caracterizará a arte moderna. Marcel Duchamp compreenderá que a própria fotografia poderá ser a condição de um labirinto de identidades que confundirá a condição de verdade pressuposta pela sua condição de identificação, quando se faz fotografar por Man Ray enquanto Rrose Scélavy, o seu célebre “alter ego” feminino.

Toda uma história prolífica do retrato fotográfico vê-se por sua vez radicalmente revolucionada pelo desenvolvimento da informática e das linguagens computacionais. A fotografia assumirá claramente a possibilidade da representação icónica de uma realidade inexistente, provocadora de uma diferente relação com a percepção e a interpretação da realidade que conhecemos. Pretensas fotografias realistas passam a ser representações de realidades artificialmente encenadas e construídas como num filme, como acontece no caso da obra de Jeff Wall ou retocadas através de programas informáticos que as tornam “mais reais do que o real”, como acontece no caso da obra de Thomas Ruff .

Em “Espelhos Matriciais”, Renato Roque, no contexto do seu projecto de investigação para um programa académico de pós-graduação no domínio da engenharia informática, utiliza novas possibilidades gráficas de composição e decomposição da imagem que o computador lhe oferece. O fotógrafo parte de retratos por ele obtidos num universo académico de estudantes e professores para os decompor em componentes cuja recombinação lhe permitirá obter como ponto de chegada exactamente o mesmo retrato que é o seu ponto de partida. Um tão quanto complexo quanto laborioso processo de computação gráfica permite-lhe a decomposição e a recomposição da imagem de modo a encontrar as correspondências que possibilitam a percepção da identidade. A reconstrução dessa imagem anteriormente dissolvida em componentes cuja associação será o princípio do processo da sua reconstrução especular constituirá o ponto de chegada de todo este processo.

O que parece ser o mesmo não o é, assim como o que parece ser diferente tão pouco o é. Uma curiosa antropomorfização dos processos informáticos materializa o exercício da percepção e do reconhecimento visuais que é condição ontológica desse “deus ex machina” que também é o ser humano. Identidade e alteridade confundem-se e redefinem-se neste processo combinatório. Cada imagem recomposta a partir de uma imagem inicial surge como o resultado de um processo análogo àquele que na literatura replica a história bíblica da criação do homem à imagem de deus em cada narrativa de um autómato construído à imagem do homem, seja o Pinóquio de Carlo Collodi, sejam o Frankenstein de Mary Shelley, a criatura de Hoffman, ou os robôs de Karel Capek , aliás o inventor da palavra “robot”, e de Isaac Asimov.

Renato Roque apresenta a sua investigação em dois formatos: o formato académico de uma tese de pós-graduação e uma exposição que se apresenta pela primeira vez na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Na arte do nosso tempo, a exposição ou a obra de arte é muitas vezes a evidência do seu processo de realização, apresentado através de suportes documentais que fazem parte da sua própria natureza. As fotografias e as imagens que Renato Roque nos apresenta são registos documentais de uma narrativa específica que é a sua própria investigação científica. Importa diferenciar a fotografia da imagem? Serão fotografias os resultados da captura de uma imagem realizada por uma máquina accionada pelo fotógrafo e “imagens” os resultados dos processos gráficos realizados pelo computador? Serão ambas imagens de diferente natureza? Como articular a diferença dos seus processos de construção com a semelhança dos seus resultados? Como confrontar as possibilidades de falsificação do real que estes mesmos processos informáticos possibilitam, hoje facilmente praticáveis através dos vários programas de “morphing” existentes? 

Ciência e arte cruzam-se nos processos técnicos que materializam estas imagens e que nos propõem um confronto com a percepção dos retratos que reproduzem, descaracterizando-os e recaracterizando-os em operações que nos confrontam com a própria natureza da percepção inerente a qualquer operação de identificação visual. A redundância é extrema, a ponto de nos deixar a interrogação do porquê de uma investigação que replica um retrato num outro retrato exactamente igual. No entanto, essa redundância torna-se paradoxal quando confrontada com a diversidade das imagens que encontramos nas componentes obtidas de cada retrato. Extrair o universal do particular sempre foi característico dos processos científicos. Indistinguir o particular do universal sempre foi característico dos processos de criação artística. Em ambos os processos, a finalidade ou o objectivo prático da construção da percepção ou do conhecimento são matérias irrelevantes.

Esta é a ambiguidade que Renato Roque nos oferece, a mesma ambiguidade geradora da obra de arte que fará parte da nossa natureza humana (Joseph Beuys assumia que cada homem era um artista…) e que assumimos no dia a dia, entre a percepção e o conhecimento, como em cada momento desse conflito entre o conhecido e o desconhecido que sucede quando pensamos reconhecer um rosto na multidão que se vem a revelar muitas vezes a expressão de uma decepção das nossas expectativas prévias ou a reconfiguração do desejo de outros rostos que ambicionaríamos reconhecer.