Eu é que digo quem são os artistas! (Natal 2004)

projecto construído a partir de um conjunto de postais de distribuição gratuita, recolhidos em cafés, bares, restaurantes e cinemas por toda a Europa

A Arte veste, como é seu hábito, um hábito cinzento, pesado. Com o carapuço enfiado, o corpo fica completamente escondido por debaixo do trajo. Só quando ergue a cabeça se vislumbra um pouco da face, de idade incerta, ou de idade impossível de determinar, pelo pouco que se consegue ver. Todos os dias a Arte percorre o palácio e, uma a uma, limpa as suas obras, alinhadas na perfeição, nas paredes das várias salas. Traz ao ombro uma sonda metálica com um longo cabo em madeira. Junto de cada fiada, enfia a sonda nos recipientes de cada obra de Arte. Liga a sonda e esta roda a alta velocidade e expulsa por centrifugação toda a sujidade, deixando a obra de Arte de novo pura e imaculada. Para casos mais difíceis, onda a sonda não consegue eliminar o lixo, a Arte corta o mal pela raiz com a enorme foice que transporta. A obra cai a seus pés e, sem raiz, chia e agoniza, e a Arte mete-a numa grande bolsa que traz por debaixo do hábito, onde é reduzida a poeira.

De repente a Arte parece distinguir à distância o som de sinos e o tilintar de copos de champanhe. A Arte levanta um pouco o carapuço do hábito que lhe cobre totalmente os olhos e parece expressar um sorriso. Ou será um mero reflexo da luz da tocha nos olhos? A verdade é que a Arte, triste e infeliz, ao recordar aquele som festivo, cerra os olhos e expressa um desejo.

De repente tocou o telefone

A Arte que era, apesar de tudo, moderna, atendeu o telemóvel que trazia no bolso. No bolso do lado contrário ao da saca onde as obras de Arte agonizantes ainda chiavam, claro. A Arte em pó perturba a recepção do sinal.

A Arte ouviu uma voz sensual, mas que lhe pareceu assustada.

Durante um segundo uma imagem erótica, de uma mulher felina, em posição de assalto sexual atravessou-lhe a memória, mas a Arte não sabia que imagem era aquela.

- Estou a ser perseguida por um monstro! Um monstro terrível com um nariz enorme, uma chifre assustador que enterra com prazer sádico nas vítimas!

- Mas quem és tu?

- Isso não interessa! Consegui despistá-lo, mas não vai demorar a encontrar-me!

- E que queres tu que eu faça!

- Convida-me para sair logo à noite! - o tom da voz mudou. Em vez de assustada parecia  ansiosa.

- Está bem! Encontramo-nos às 10 horas no Frágil! - a voz do outro lado suspirou e desligou.

O Frágil era um bar na moda. Aliás a Arte só frequentava os lugares mais In da cidade. Um lugar In é um lugar que a Arte diz que é In.  O Frágil, situado no cimo de um arranha-céus, era o ponto de encontro de todos os intelectuais e notáveis da cidade.

A Arte entusiasmou-se, antecipando o encontro. Mas não tinha nada para vestir. Por debaixo daquele hábito só uma velha e coçada T-shirt! No guarda-vestidos só trapos! Não tinha outro remédio senão vestir a T-shirt!

A Arte ergueu a foice e uma das obras, um thriller musical caiu no chão de laje do palácio, cortada pela raiz. Caiu com um estrondo em Sol, o que era de admirar pois já era de noite. A música ouvia-se de facto muito ténue, pois, sem raízes, a potência não é suficiente para alimentar o sistema amplificador de uma obra. Antes que estrebuchasse, a Arte arrancou-lhe uma peça do guarda-roupa. Sem raízes, o guarda-roupa de qualquer obra é facilmente arrancado.

A Arte despiu-se e vestiu um vestido leve, de tom creme, que lhe realçava a beleza. A Arte era agora uma diva americana. Ao arrancar a peça do guarda-roupa a Arte  não tivera suficiente cuidado e arrancara também a personagem.

Quando se encontraram ela afinal era um ele. Os telefones às vezes enganam. Ou será que a Arte também arrancara esta parte do argumento, junto com a personagem? Às 10 horas estavam apaixonados e faziam planos para o futuro. Cada um perscrutava o seu futuro longínquo, consumidos pelo fogo da paixão e do desejo!

Casaram. Foram em lua de mel para o campo. Tiveram muitos filhos.

A Arte deixou de fazer a segurança ao palácio. Um homem estranho, de chapéu  fora de moda na cabeça, com um sorriso irónico, aproveitou e entrou no palácio. Caminhava com passadas  largas, como que trouxesse atrás de si uma multidão de manifestantes. Parecia gritar cada vez mais alto “Cada pessoa é um artista! Cada pessoa é um artista!” A Arte reabre os olhos, ergue a foice e corta a cabeça ao estranho. Pega na sonda metálica e limpa o pó a uma cadeira moldada de cera, colocada contra a parede. Murmura para si “Eu é que digo quem são os artistas!”. Os sinos ao longe tocam mais forte...

© Renato Roque - enviado aos amigos no Natal 2004