A hora sua

 

Olhai, os homens, segundo temos discorrido, são sôfregos das horas da vida; reservam todas para si, a fim de as dispenderem vãmente em seus passatempos; e porque tomam e gastam por sua conta todas as horas da vida, só querem dar a Deus a hora da sua morte. Por esta causa, quando aos mais distraídos lhe morde no peito aquela saudável aranha da consciência, sempre lhe ouvimos oferecer a Deus a hora da morte. Mas Cristo, como sacrificou a seu eterno Pai todas as horas da sua vida, por isso mesmo recebeu do Padre aquela hora da morte para si somente, e lhe chamou hora sua, como por ele disse o evangelista S. João; em a qual hora morreu tanto por sua própria vontade que a essa mesma hora da sua morte chamou só em sua vida hora sua. Mas isto baste de mandato, e sirva de maior realce ao ofício e nome das horas confessar um tal cronista como S. João que também Cristo teve a sua hora, notificando-a por tal a todos os viventes, para que não haja algum tão impaciente que desespere de saber a infalibilidade da hora que o está esperando, como hora sua.

                         

 

(Relógios falantes – Francisco Manuel de Melo)