O que resta da Arte
O palácio era enorme, branco, e quase todo coberto de vidro que reflectia a luz do sol e me obrigava a semicerrar os olhos. Comecei a subir a imensa escadaria em mármore que conduzia à porta principal do palácio. A meio parei, olhei para trás e vi os meus pés descalços marcados nos degraus. Surpreendido, continuei a subir até chegar à porta de entrada. Um velho sentado no chão olhou para mim com uns grandes olhos azuis.
-Quem és tu? - perguntei eu.
- Sou o guarda do palácio - respondeu-me com uma voz muito doce.
- Tu sozinho? Num palácio tão grande?
- Neste palácio não há nada para roubar. Quem o visita traz sempre alguma coisa e nunca consegue levar nada que já não possuísse.
- Mas eu não trago nada comigo - e mostrei-lhe as palmas das mãos abertas.
- Deixaste as pegadas na escada e ainda hás-de deixar mais alguma coisa - o olhar doce e sereno do velho fez-me sentir que existia algo de profético nas suas palavras.
- A quem pertence este palácio?
- Pertence à Arte.
- À Arte?! E onde posso encontrá-la?
- Segues este corredor até chegares a um enorme pátio interior cheio de luz e rodeado por quatro vezes quatro arcos semicirculares. No centro desse pátio encontrarás a Arte.
Agradeci e segui ao longo do corredor. Atravessei várias passagens que partiam à esquerda e à direita, mas, seguindo as instruções do velho, continuei, até entrar por fim num pátio enorme, majestoso, onde a luz forte me feriu os olhos já habituados à semi-penumbra do corredor. Olhei à volta e confirmei: quatro vezes quatro arcos semi-circulares, mas o pátio parecia deserto. Dirigi-me ao centro e apercebi-me de que existia um pequeno amontoado esbranquiçado, cuja origem não conseguia identificar. Quando cheguei à sua beira vi que se tratava de um monte de pequenas pedras irregulares, aparentemente de mármore branco, espalhadas por uma área de cerca de vinte metros quadrados. Baixei-me e apanhei uma. Era uma pedra pequena que apresentava uma zona polida, como se tivesse pertencido a um objecto de origem humana, e uma superfície rugosa irregular onde os cristais de quartzo brilhavam, reflectindo a luz. Meti a pedra no bolso como recordação e voltei para trás. À porta encontrei de novo o velho, que olhou para mim com um quase-sorriso, onde não soube se ler sarcasmo ou simpatia. Um pouco rudemente disse-lhe então:
- No pátio que me indicaste não havia Arte nenhuma!
- Mas se tu a a trazes no bolso - sorriu, e eu então eu percebi que não havia sarcasmo nenhum.
- Mas no bolso trago apenas uma pedra disforme - meti a a mão ao bolso, tirei a pedra para fora e olhei-a. Os cristais brilharam novamente à luz do sol.
- Sabes,
no pátio central do palácio houve um dia uma estátua
lindíssima. Era tão bela que quem a visitava não
conseguia suportar-lhe o olhar durante muito tempo. Os
homens vinham ao palácio e partiam felizes, tendo um
modelo para as suas obras e apenas com a certeza de um
dia voltar. Até que um dia um grupo de homens quis toda
aquela beleza para si e tentou levar a estátua consigo,
mas, ao deslocá-la, a estátua estilhaçou-se e ficou
reduzida ao monte de pequenas pedras que tu viste. - Então a Arte já não existe? - perguntei desolado. - Existe! Está em cada uma daquelas pedras. Está nessa pedra que tens na tua mão. Tal como a cor dos teus olhos, do teu cabelo, a forma da tua cabeça estão escritas em cada célula do teu corpo, tal como quando estilhaças um holograma em cada pedaço tens toda a imagem que estava no holograma inicial, também em cada uma dessas pequenas pedras, se conseguires ver, está a Arte. |
- Posso então também levar a pedra comigo?
- Podes!
- Mas tu disseste que neste palácio não havia nada para roubar.
- Essa pedra é tua. Estava aí à tua espera. Um dia virás devolvê-la ao palácio
- E como hei-de eu saber se a estou a ver a Arte ou não?
- Pega! - estendeu-me um pequeno espelho rectangular que eu agarrei - É um espelho mágico para te ajudar a reconhecer a Arte. Não te preocupes, se a conseguires ver, saberás, mesmo que os outros não a vejam!
Olhei de novo a pedra, reflectida pela superfície brilhante do espelho, e apertei-a na mão, com força. Mas meti-a de novo no bolso sem nada conseguir ver. Despedi-me do velho e afastei-me.
Desde então todos
os dias olho a pequena pedra branca, reflectida no espelho
mágico, à procura de ver a Arte. Por vezes tenho quase a
sensação de conseguir ver aquela estátua muito bela cujo olhar
os homens não suportavam por muito tempo. Mas a impressão logo
se desfaz e a pedra volta a ser uma pedra disforme que volto a
meter no bolso.
© Renato Roque 1997
Notas:
Última actualização = 17/03/97