Os sonhos são a preto e branco
Renato Roque expõe em 1994 'Os sonhos são a preto e branco' na Galeria Imagolucis no Porto.
Esta exposição consiste num conjunto de cerca de 25 imagens 40x50cm em papel Cibacrome, a partir de negativos a preto e branco.
Esta exposição foi acompanhada de uma edição de 8 postais, onde se reproduzem 8 das imagens, e de um texto que está incluído no livro 'As arcas de sonhos' editado pela Colibri nesse mesmo ano.
A exposição foi ainda à galeria Municipal de V. Franca de Xira em 1994, a Bégard na Bretanha em 1995, à Árvore no Porto e a V.N. Cerveira em 1997.Os sonhos são a preto e branco
(Texto para catálogo de exposição de Fotografia com o mesmo nome na Galeria Imagolucis no Porto em Set/94)
Estava decidido a fotografar um sonho. Coloquei a máquina fotográfica com cuidado na beira da cama, sobre a mesa de cabeceira. Tinha-a carregado com filme sensível à luz de sonho. Nos bolsos do casaco do pijama coloquei mais alguns filmes, para o caso de precisar. Deitei-me, e esperei pelo sonho. Adormeci, e pouco depois a porta do sonho abriu-se à minha frente. Antes de entrar, num acto reflexo, reflectido pelo espelho do quarto, estendi a mão e peguei na máquina que coloquei ao ombro. O ombro descaiu um pouco para o lado esquerdo.
Subi as escadas do sonho e entrei na sala principal. Comecei a fotografar. Fotografei de todos os ângulos. Ao reencontrar um ângulo de 10 graus, olhei os meus outros Eus e fotografei-os. Cheguei ao fim do filme. Rebobinei-o e carreguei de novo a máquina. Um Eu aproveitou, saltou, correu, abriu a porta da sala e saiu. Segui-o. Entrei dentro de um compartimento cheio de água muito azul e muito transparente. Caminhava sobre uma rede fina onde se debatiam imagens muito belas, procurando libertar-se. Uma olhou-me e chorou uma lágrima de cristal procurando comover-me. Mas desta vez eu estava prevenido. Escondi-me por detrás da máquina e disparei. A imagem contorceu-se, arregalou os olhos e caiu a meus pés. Peguei nela, espremi-a para lhe tirar toda a água, e metia-a no outro bolso do casaco de pijama. Continuei a disparar e a encher o bolso de imagens muito belas. Já tinha o bolso a abarrotar e lastimei a minha falta de lembrança. Deveria ter trazido o meu saco de imagens. Nunca se deve entrar num sonho sem o saco de imagens. Claro que um casaco de pijama com bolsos fundos já não é mau, mas é muitas vezes insuficiente. Não via o Eu que tinha fugido. Ergui duas imagens enormes, pensando que Ele poderia ter-se escondido por debaixo. As imagens sempre foram óptimos esconderijos. Basta procurar uma imagem com as dimensões do nosso corpo. Se for maior pode-se recortar. Também se podem coser imagens mais pequenas.
Atravessei a sala com todo o cuidado para não pisar nenhuma imagem, e abri uma porta que dava para um longo corredor escuro. Ao fundo, muito ao fundo, vi-o. Vestia calções e sandálias. Na mão direita levava uma pasta, como um menino de escola primária. Entrei no túnel do tempo. À esquerda e à direita havia muitas portas que eu não tive vontade de abrir. Andei durante muito tempo. O túnel era escuro e não podia fotografar. Ao sair fui ofuscado pela luz brilhante do sol que se entretinha a brincar com as sombras e que brilhava de gozo. Eu estava numa encosta muito verde onde se desenhavam alguns castanheiros jovens. À sua roda as sombras dançavam e cantavam uma canção de roda. Não me consegui lembrar da letra para as acompanhar. Ao cimo, um castanheiro centenário, de copa redonda que parecia olhar pelos mais novos, voltou-se para mim e pediu-me para o fotografar. Não pude recusar. Todos os outros também quiseram ser fotografados. As sombras pararam durante os momentos para não saírem tremidas nas fotografias. Tive de carregar novamente a máquina. As sombras voltaram a dançar à volta dos castanheiros. Subi a encosta e encostei-me ao tronco da velha árvore.
- Viste passar um Eu por aqui?- perguntei-lhe.
- Tem passado por aqui muitas vezes. Encosta-se ao meu tronco, tal como tu, e desce até àquele vale onde corre um regato, onde se descalça e molha os pés.
Desci a encosta até ao ribeiro. A água era verde esmeralda, pincelada por míriades de reflexos de oiro. Na beira do ribeiro uma mulher muito bela lavava. Tinha longos cabelos loiros cujas pontas mergulhavam na água que dourada se lhes rendia. Descalcei-me e meti os pés na água fria. Chapinei e molhei as calças do pijama. Entretanto a mulher desaparecera, só os reflexos dos seus cabelos permaneciam. Fotografei-os. Acabei o filme. Decidi por isso sair do sonho.
No dia seguinte mandei revelar os filmes que tinha feito. Surpreendido, ao olhar as imagens que tinha obtido, verifiquei que eram a preto e branco.
Renato Roque
Notas:
Última actualização =11/02/1999