A fotografia como forma de experiência artística e dinâmica
associativa
ou
melhor,
a fotografia come-se, e é óptima…
Os meus amigos sentavam-se todos à volta da mesa.
Coloquei o rolo ainda fumegante no centro. Cortei cuidadosamente uma fatia para
cada um e enchi-lhes os pequenos copos de cristal com vinho do Porto. Eles
olhavam para mim descrentes: não sabiam que as fotografias também se comem. A
travessa dos poemas circulava, e cada um tirava um pequeno poema, quase sempre
hesitando sobre qual escolher. Eu aconselhava o poema
de acordo com a imagem. Recomendava um poema do Eugénio de Andrade, para
uma fotografia a cores em tons de azul; a poesia do Sá-Carneiro só para
fotografias a preto e branco, quando muito, eventualmente, para uma fotografia a
cores em tons de púrpura. A poesia é óptima para acompanhar imagens. É pena
já não poder dizê-lo à Natália Correia. Ela haveria de gostar de ouvir.
Erguemos os copos à Arte, provámos o vinho, e começámos a comer. Vi-lhes os
olhos brilhar de prazer. Eles comiam
devagar, saboreando as imagens. Algumas imagens mais atrevidas escorriam pelos
queixos e pingavam na toalha branca. Bebíamos o vinho e contávamos histórias.
Senti na boca o gosto ácido de uma revelação. A fotografia não tinha sido
bem lavada. Bebi um golo de vinho e fixei-lhe o sabor. Contei-lhes então a
minha visita ao palácio da Arte. Eles abriram os olhos incrédulos e
perguntaram-me pela pedra e pelo espelho mágico. Eu apontei-lhes os pequenos
pedaços de rolo que cada um tinha ainda no seu prato. “Queres dizer que
estamos a engolir a Arte e o espelho mágico que permite reconhecê-la?”,
perguntaram. Eu sorri e respondi: “O que pensavam que vos causava tanto
prazer?”
…
Não há associação recreativa, desportiva ou cultural, que se preze,
que não tenha um pequeno bar para os seus associados. Por que não servir então
pequenas fotografias ao lanche. Há imagens óptimas pelo preço de um queque ou
de um bolo de arroz. As imagens são óptimas com vinho do Porto, especialmente
as doces. As amargas poderão acompanhar vinho tinto seco ou um poema azedo. Mas
cuidado, as imagens só devem ser servidas em dias especiais: as imagens em
contacto com o ar deterioram-se facilmente. É preciso tratá-las com meiguice
ou então lançá-las contra os muros das cidades em jeito de provocação…
Renato Roque
23/04/97