Composição em três tempos sobre a língua

1º tempo - Língua de fora

Estava sentada à minha frente num daqueles assentos laranjas, duros e desconfortáveis do autocarro. Vestia uma saia curta, preta, que deixava ver as pernas cruzadas, bem torneadas, que terminavam num par de botas de cordões, também pretas. Trazia uma blusa branca translúcida que deixava adivinhar as linhas do soutien e, por cima, um blusão de couro a condizer com a saia e com as botas. O cabelo era curto, liso, cortado à moda, e realçava-lhe os traços da face: uma boca de lábios finos, bem desenhados, o queixo um pouco arrebitado, o nariz delgado e sobretudo os olhos grandes, côr de amêndoa, acentuados por um traço ligeiro de lápis preto nas pálpebras. Eu olhava para ela e, de vez em quando, para o escuro no exterior, através da janela, mas, de facto, o que observava era o seu reflexo no vidro. De repente, quando de novo desviei a cabeça e a olhei, ela fixou pela primeira vez os seus olhos em mim e, atrevida, deitou a língua de fora. Era uma língua carnuda, vermelha, que desenhava um coração por debaixo do seu lábio. Embaraçado, fingi olhar de novo através da janela para a noite que não existia no exterior, mergulhada na sua figura reflectida pela janela. Não conseguia libertar-me do seu olhar que me perfurava. Comecei a sangrar, e o vermelho do sangue sujou o laranja do banco. Um puto sentado ao meu lado aproveitou para escrever ‘Rui loves Cristina’ e o R brilhante quase se me colou às calças novas, estragando-as, mas não me consegui mover. Ela continuava com a língua de fora.

Finalmente o autocarro parou, ela levantou-se, e sem deixar de me olhar, atirou-me à cara:

 - Maricas! - e saiu, a bambolear as nádegas e sem olhar para trás.

 2º tempo - Língua de dentro

A Língua passava os dias dentro de casa, à janela. Ora lia, ora bordava. De vez em quando olhava a rua, com seu olhar lânguido. Lambia a vidraça com melancolia. Os moços que passavam erguiam os olhos cheios de desejo. Ela parecia não dar por eles, e penteava os seus longos cabelos louros horas a fio. As horas fiadas escorriam, húmidas de saliva, por entre os dentes do pente em prata, que lhe oferecera o seu pai, e acabavam exangues no soalho envernizado, reflectindo os últimos raios de luz do sol poente. Ela então erguia-se e preparava-se para o jantar. O Sol, esse, aproveitava para se pôr definitivamente, e então anoitecia.

A Língua era o orgulho do seu pai, senhor severo, um purista, à antiga portuguesa. Ela regressara há pouco do convento, onde fora educada com rigor e austeridade, no meio dos clássicos, de Fernão Lopes a Almeida Garrett, longe de todas as influências nefastas, fossem elas castelhanas ou outras.

Durante o jantar, quase a única ocasião em que estavam os dois juntos, muitas vezes o pai levantava os olhos e a olhava longamente, com vaidade. Ela raramente dava por isso e, quando isso acontecia, corava ligeiramente, o que enternecia o pai. Era nestes raros momentos mágicos que a filha mais lhe recordava a mãe. Também ela passara os dias à janela, ora lendo, ora bordando. Ele passava na rua e erguia para ela o seu olhar cobiçoso…

Mas um dia, ao jantar, o pai reparou numa lágrima que brilhava na face da Língua.

- Filha! Por que choras? - perguntou, preocupado.

- Não é nada… - respondeu a fiha, passando o dedo esguio pela face e retirando a lágrima que lhe deslizou ao longo do dedo e, por um momento, reflectiu a luz do candelabro, como um diamante, caindo no soalho em carvalho, que a recebeu.

- Uma filha deve a seu pai o direito a toda a verdade! - disse o pai, ainda com alguma doçura na voz.

Ela rompeu num choro aflito e, como que com dificuldade em respirar, soluçou:

- Estou grávida!  - o choro tornou-se um estertor, e ela escondeu o rosto muito pálido com as mãos.

O pai de início não conseguiu dizer nada. Ficou pregado à cadeira, e sentiu uma dor aguda dentro do peito. De repente, explodiu, ergueu-se e quase agrediu a filha. Apertou então com força as mãos na tábua da mesa, para conseguir dominar-se.

- E quem é o pai? Um desses estrangeiros que abusam da nossa hospitalidade?

- Não sei! - e a filha escondeu de novo o rosto por detrás das mãos brancas e esguias.

- Vai-te, antes que eu cometa alguma loucura! - e a Língua saiu a correr da sala de jantar, deixando atrás um rasto húmido de saliva e ranho.

O pai aconselhou-se junto das mulheres da casa e, passados três dias, visitou uma velha mulher que vivia numa casa pequena, escondida nos arredores da cidade.

A filha deixou de aparecer à janela.

Na semana seguinte a velha criada levou a menina à pequena casa dos arredores. Regressaram protegidas pela escuridão da noite.

A Língua continuou a não aparecer à janela. O pai fez constar que ela se encontrava doente.

Até que um dia a menina reapareceu à janela. E os rapazes que passavam na rua alegraram-se e erguiam os olhos para a contemplar. Não notaram qualquer diferença. A Língua continuava bela e sensual como sempre.

O pai esqueceu. Falava agora frequentemente da necessidade de encontrar um noivo de boas famílias, português, para a sua filha. Tinha de escolher com todo o cuidado, pois ela era um tesouro: como ela não havia!

A menina ora lia, ora bordava. De quando em vez lambia as vidraças com melancolia…

3º tempo - Má língua

Eu tinha agora os olhos postos no chão do autocarro. Fingia-me alheio ao que me rodeava. Ouvi então uma voz à minha frente: ‘Que vergonha!’. Levantei disfarçadamente o olhar e vi que era uma velha, e que estava a olhar para mim. Os  seus olhos refectiam reprovação que me atingia. Protegendo-me, voltei a pregar os olhos no chão e senti a reprovação a passar por cima da cabeça e a embater com estrondo no fundo do autocarro. Mas ela repetiu ainda mais alto: ‘Que vergonha! Trazem as saias tão curtas que se lhes vê o rabo!’. Tive então vontade de me voltar para ela e de lhe deitar a língua de fora, mas, como rapaz tímido e pouco ousado que sou, levantei-me, despreguei os olhos, que livres rodaram descontrolados na direcção da porta, e, envergonhado, saí duas paragens antes da minha, fantasiando respostas e ousadias para com o raio da velha...  

                                                                       Renato Roque  1997 – publicado na revista Camaleão