Composição em três tempos sobre a língua
1º tempo - Língua de fora
Finalmente
o autocarro parou, ela levantou-se, e sem deixar de me olhar, atirou-me à cara:
-
Maricas! - e saiu, a bambolear as nádegas e sem olhar para trás.
A
Língua era o orgulho do seu pai, senhor severo, um purista, à antiga
portuguesa. Ela regressara há pouco do convento, onde fora educada com rigor e
austeridade, no meio dos clássicos, de Fernão Lopes a Almeida Garrett, longe
de todas as influências nefastas, fossem elas castelhanas ou outras.
Durante
o jantar, quase a única ocasião em que estavam os dois juntos, muitas vezes o
pai levantava os olhos e a olhava longamente, com vaidade. Ela raramente dava
por isso e, quando isso acontecia, corava ligeiramente, o que enternecia o pai.
Era nestes raros momentos mágicos que a filha mais lhe recordava a mãe. Também
ela passara os dias à janela, ora lendo, ora bordando. Ele passava na rua e
erguia para ela o seu olhar cobiçoso…
Mas
um dia, ao jantar, o pai reparou numa lágrima que brilhava na face da Língua.
-
Filha! Por que choras? - perguntou, preocupado.
-
Não é nada… - respondeu a fiha, passando o dedo esguio pela face e retirando
a lágrima que lhe deslizou ao longo do dedo e, por um momento, reflectiu a luz
do candelabro, como um diamante, caindo no soalho em carvalho, que a recebeu.
-
Uma filha deve a seu pai o direito a toda a verdade! - disse o pai, ainda com
alguma doçura na voz.
Ela
rompeu num choro aflito e, como que com dificuldade em respirar, soluçou:
-
Estou grávida! - o choro tornou-se um estertor, e ela escondeu o rosto
muito pálido com as mãos.
O
pai de início não conseguiu dizer nada. Ficou pregado à cadeira, e sentiu uma
dor aguda dentro do peito. De repente, explodiu, ergueu-se e quase agrediu a
filha. Apertou então com força as mãos na tábua da mesa, para conseguir
dominar-se.
-
E quem é o pai? Um desses estrangeiros que abusam da nossa hospitalidade?
-
Não sei! - e a filha escondeu de novo o rosto por detrás das mãos brancas e
esguias.
-
Vai-te, antes que eu cometa alguma loucura! - e a Língua saiu a correr da sala
de jantar, deixando atrás um rasto húmido de saliva e ranho.
O
pai aconselhou-se junto das mulheres da casa e, passados três dias, visitou uma
velha mulher que vivia numa casa pequena, escondida nos arredores da cidade.
A
filha deixou de aparecer à janela.
Na
semana seguinte a velha criada levou a menina à pequena casa dos arredores.
Regressaram protegidas pela escuridão da noite.
A
Língua continuou a não aparecer à janela. O pai fez constar que ela se
encontrava doente.
Até
que um dia a menina reapareceu à janela. E os rapazes que passavam na rua
alegraram-se e erguiam os olhos para a contemplar. Não notaram qualquer diferença.
A Língua continuava bela e sensual como sempre.
O
pai esqueceu. Falava agora frequentemente da necessidade de encontrar um noivo
de boas famílias, português, para a sua filha. Tinha de escolher com todo o
cuidado, pois ela era um tesouro: como ela não havia!
A
menina ora lia, ora bordava. De quando em vez lambia as vidraças com melancolia…
Renato Roque
1997 – publicado na revista Camaleão