Mas afinal porque não havemos de ser artistas?

Renato Roque Nov. 2001

Sim, porque não?

Tudo começou por uma polémica entre mim e o Rui Araújo com os poetas metidos ao barulho. Depois, com a mediação do Rui Bebiano, lá acabámos por concluir que tinha havido afinal alguns mal-entendidos de parte a parte e que algumas divergências não eram aquilo que pareciam a princípio e os poetas puderam dormir descansados, se é que os poetas conseguem alguma vez dormir descansados. Alguns de vós com certeza lastimarão, já à espera de faca e de alguidar!

Mas se a polémica se atenuou, há ainda obviamente algumas diferenças entre nós que interessa explorar e aprofundar. O Rui Bebiano desafiou-nos a passar à forma de um ou mais artigos algumas das questões que fomos discutindo informalmente, por correio electrónico, entre nós os dois. O desafio do Rui Bebiano levei-o comigo e fui remexendo-o no bolso das calças, como costumo fazer aos desafios que me parecem estimulantes. Entretanto outras urgências surgiram e só hoje o tiro do bolso e o lanço ao ar, esperando acertar nas cabeças de alguns de vós.

Mas como centrar, neste pequeno artigo de opinião, o meu ponto de vista sobre as questões chave, onde me parece que podem residir ainda as principais diferenças? Que tipo de agulhas usar para descoser esse ponto? Lembrei-me dum escrito interessante da Eduarda Dionísio "Artes Públicas e Privadas", editado pela Abril em Maio, e decidi tomar esse escrito como fio condutor desta minha contribuição, já que é sempre mais fácil escrever a partir de palavras roubadas, e a partir dele identifiquei três questões que vou tentar abordar. Outros, nomeadamente o Rui Araújo, se tiverem vontade e tempo,  poderão também tentar dar o seu contributo.

Vou então lançar o fio do ponto de vista e começar.

 

"A palavra Arte assusta".

A Eduarda Dionísio começa exactamente assim, a lembrar no seu texto o desconforto que a palavra Arte provoca em muitos de nós, desconforto que resulta da ideia da Arte ser coisa de elites, isto apesar de há alguns, afinal poucos, séculos o artista ainda significar alguém que foi aprendiz de arte numa oficina, onde aprendia os segredos da fabricação das tintas e da preparação das telas. Por isso, quase por ironia, ainda hoje os carpinteiros, os pedreiros e os serralheiros se intitulam sem complexos de artistas. A eles a arte não os assusta, porque aprenderam com toda a naturalidade a sua arte de carpinteiro, da pedreiro, ou do ferreiro.

Mas apesar deste desconforto actual e recente, a Eduarda Dionísio descobre que a Arte está à nossa volta, à espreita, por todo o lado, se dermos por ela. E quando assim fala não se refere aos museus, aos livros de arte, às galerias, às idas ao teatro e ao cinema, mas sim a um consumo de arte quotidiano, involuntário: quando nos sentamos numa cadeira, bebemos um copo de água, cortamos um bife e o levamos à boca, espetado nos dentes de um garfo. Todos estes objectos, mesmo que não sejam Arte são do domínio da Arte.

"Temos um convívio diário com objectos que na sua maioria são NÃO-ARTE - feitos em série, que escondem a personalidade de quem os criou, mas susceptíveis de, se produzidos de um outro modo, serem Arte. Aliás às vezes são mesmo Arte e, quando isso acontece, nós quase nunca damos por isso. E não damos por isso porque nos aparecem em lugares e com funções que a nossa ideia de Arte não autoriza…".

E daqui a Eduarda parte para a experiência da Bauhaus, uma escola de Artes diferente de tudo antes e que rompeu com a forma tradicional de entender a Arte e cujos fundadores defendiam que as formas dos objectos do quotidiano também podem contribuir para a construção de uma sociedade diferente. O sucesso que obtiveram poderá ser considerado relativo: a Bauhaus foi encerrada por Hitler em 1933, mas muito do design e do mundo das artes gráficas de hoje, o design industrial, etc, é em grande parte uma herança, ainda que por vezes distorcida, da gente da Bauhaus.

E aqui a Eduarda pergunta: " Se tudo o que nos cerca, se tudo aquilo que se fabrica, tudo o que usamos fosse Arte, a nossa vida seria outra?" E desta extrai outra pergunta, que vai ser a minha primeira questão.

1. Podemos mudar o mundo, torná-lo mais justo, eliminar a pobreza e a discriminação, sem mudar os objectos que usamos, sem que eles se tornem Arte?

Para os artistas da Bauhaus só era possível mudar o mundo mudando os objectos que usamos e transformando-os em objectos de Arte; para a Eduarda Dionísio também e apresenta o exemplo dos rompimentos artísticos na União Soviética pós-revolução.

"Artistas e escultores são convocados a agarrar, sem demora, em latas de tinta e a iluminar, a pintar com os próprios pincéis da própria mestria as ancas, a testa e o peito das cidades, das estações e das manadas de vagões ferroviários eternamente em fuga"(Maiakovsky 1918)

até esses rompimentos e inovações serem completamente cilindrados pelo Estalinismo e pelo Realismo Socialista, ao mesmo tempo que na Alemanha se iniciava a perseguição da "Arte Degenerada" onde se incluía o Cubismo, o Dadaísmo, o futurismo, e naturalmente a Bauhaus.

Será possível criar uma sociedade nova sem questionarmos as casas, as ruas, os jardins, e mesmo as cadeiras ou as mesas?

Eu pessoalmente acredito, tal como a Eduarda e os elementos da Bauhaus, que a transformação do mundo passa também pela transformação da atitude de todos perante esse mundo e perante a transformação de tudo à nossa volta em Arte. Nesse momento utópico porventura a Arte desapareceria…

Como dizia Mondrian: "A arte desaparecerá à medida que a própria vida ganhar em equilíbrio"

E da primeira questão passo facilmente a uma segunda que a Eduarda não explicita mas aborda.

2.Podemos mudar o mundo, torná-lo mais justo, eliminar a pobreza e a discriminação, sem procurar fazer de cada pessoa um criador?

Neste mundo de globalização há uma tendência para um clivar cada vez mais fundo entre aqueles que produzem arte ou cultura - os artistas, os animadores e os programadores profissionais - e os que consomem. Os que consomem quase sempre mastigam e nem sequer engolem, deitam fora: visita-se o CCB ou o Guggenheim em Bilbau, porque a visita faz parte de todos os roteiros turísticos. Parecerá mal não o fazer, não comprar o catálogo para colocar visível na estante da sala de visitas.

Para além do lado ideológico por detrás desta dicotomia, há o negócio em que a Arte e a Cultura se transformaram. Pelo meio, entre os produtores e consumidores há muitas vezes a figura de muitos intermediários (alguns parasitas?) numa indústria próspera e crescente: os marchands, os programadores, os comissários e outras, muitas, aves cada vez menos raras.

Só se é artista se louvado pelas revistas e pelos críticos do sistema. Vivemos num clima de arte comemorativa, arte-espectáculo, arte de grandes meios tecnológicos e financeiros, onde somos transformados em simples consumidores/espectadores e nos 'obrigam' a assistir ao espectáculo, a abrir a boca de espanto e a bater palmas no fim. A Arte é cada vez mais algo muito complicado, dispendioso, palavra que por si só assusta, só para profissionais.

Ui...Ui...Ui... "A Arte assusta", lá diz a Eduarda. Eu também dizia isso, ou não?...

Esta separação entre aqueles que pensam, criam, inovam e aqueles que consomem é justa? Ou pelo contrário o direito à criação é um direito essencial, uma exigência da democracia. Não fomos já todos um dia produtores de Arte. Basta pensar na produção artística de todas as crianças. Não poderemos sê-lo no dia a dia? Falo de Arte, não de obras-primas! Algumas virão a sê-lo, porventura.

É esta a interpretação que faço do slogan "Cada pessoa é um artista" do J. Beuys. A criação, a inovação e a arte são parte da vida e como tal todos terão o direito de, se quiserem pelo menos, de poder criar, de inovar e como tal há que lutar por criar as condições que viabilizem esse direito. Como é óbvio tal defesa não contraria a diversidade de vocações e aptidões, aliás para o Beuys ser artista poderia significar ser criativo e inovador como economista, carpinteiro, ou lavrador. É muito diferente um carpinteiro que trabalha numa carpintaria a fazer 10 tipos de cadeiras, de acordo com as especificações que recebe do patrão ou do encarregado, ou um carpinteiro que pode criar as suas próprias cadeiras.


Não se trata de uma atitude populista de defender que tudo o que é popular e que vem do povo é bom. Hoje, muito será mesmo mau ou muito mau, tendo em conta o povo e os caciques desse povo que temos. Trata-se sim de criar condições para que todos, que o queiram, possam criar.

Como dizia Herman Hesse - vou traduzir algo livremente - " Escrever um mau poema traz mais felicidade que ler os mais belos de todos".

Ou como disse Camões a queixar-se do poder e do mundo "quem não sabe arte não na estima"

Ou como diz a Eduarda " quem não faz Arte ou nunca fez, de uma maneira ou de outra, quem não experimenta ou nunca experimentou, quem pensa que não lhe é possível experimentá-lo, dificilmente a estimará"

Eu pessoalmente também acredito que não pode haver uma vida plena sem criação. E passo à última questão.

3. O que distingue a Arte das outras coisas?

Depois de abordar algumas das questões que referi anteriormente, a Eduarda Dionísio procura apresentar o seu ponto de vista do que é Arte e do que a permite distinguir de outras coisas e é neste ponto que a opinião dela me oferece algumas reservas.

Para a Eduarda só existe Arte se revelar, de uma maneira ou de outra, uma visão do mundo.

"Não há grande artista que não seja no campo da visão um revolucionário".

E justifica:

Provavelmente nenhum "grande" artista esteve plenamente contente com o seu tempo. Ou seja não "coincidiu" com ele. Isto de muitas maneiras…Penso que é mais fácil um "reaccionário" ser "artista" do que um "conservador". A incoincidência é pelo menos um motor. Entre parênteses: será que alguém que se contenta com o seu tempo é capaz sequer de "descobrir" o mundo, de ter vontade de fazer "coisas" a partir dele, que são elas próprias pequenos mundos? Mesmo que lhe tenham ensinado a fazer "bem" e que tenha aprendido "bem", a fazer objectos tecnicamente "perfeitos", não estará aí a "grande" Arte, a do "visionário". Aos coincidentes com o seu tempo é difícil ser artista.

Para a Eduarda a Arte só existe se ela revelar uma visão de um mundo, dum mundo que não é o que existe hoje, mas um mundo novo que essa Arte poderá ajudar a transformar. Passo a citar agora a Eduarda no texto "Artes, para que vos quero" do ciclo "Estaca Zero", organizado também pela Abril em Maio.

…como é que um romance ou uma pintura que apenas inventa no terreno da "técnica" (não digo "forma", digo "técnica") pode ter peso na "transformação do mundo" e "interessar" a quem está interessado em "modificá-lo"? Ou seja: que podemos fazer com esse romance? com essa pintura? O que é que a esquerda pode fazer com elas? Que "vantagens" lhe traz? …Julgo que há modos de produção que interessam a uma cultura de esquerda e outros que interessam menos ou não interessam nada. Há obras que têm e outras que não têm um valor de uso. E nem todas têm o mesmo. Umas tiveram e deixaram de ter. Outras não tiveram e passaram a ter. E podem não ser as de melhor "qualidade" que têm mais "valor de uso"…O que me interessa na Arte (hoje, talvez não amanhã) é poder ser a contradição e a dúvida transformada em objecto. E é para a expressão da contradição e da dúvida que o "canhestro" da mão esquerda serve. E, sem querer fazer jogos de palavras, parece-me que é também aí que a Esquerda – passo para a política - poderia estar em vantagem. Habituada que foi (ou habituada que estava) a lidar com contradições.

Eu estarei de acordo com a perspectiva de transformação do mundo, se entendida numa perspectiva muito aberta. Qualquer obra de arte, se inovadora, se criativa, estará de certa forma a contribuir para a transformação do mundo, quanto mais não seja do nosso mundo interior, muitas vezes sem sequer o seu autor ter consciência plena desse facto. Como diz a Eduarda:

"a Arte nunca poderá ser o terreno do "óbvio" e do "fácil" e nunca poderá coincidir portanto com a "emoção fácil com que todos os dias nos enganam".

E aí eu estou de acordo. Mas para a Eduarda parece haver contradições que permitem realçar uma Arte de outras Artes. Ainda o serão depois disso?

Hoje, a "contradição" que me pode levar a tomar partido por uma Arte contra outra, a insistir que há (ou pode haver) uma Arte de esquerda (mesmo quando não foi feita para isso), … está na forma como a Arte entra (ou pode entrar, ou é bom que entre) na "vida de todos os dias de toda a gente". Essa contradição tento formulá-la assim (e prefiro "contradição" a "utopia"): por um lado, querermos transformar a Arte em parte "normal" das nossas vidas (de todas as vidas), fazê-la portanto entrar numa "rotina", de toda a gente (que assim adquiriria ferramentas que só alguns neste momento têm, diminuindo assim o seu estatuto de "dominados"), torná-la necessária à própria "sobrevivência" de toda a gente (que passaria a precisar dela "como de pão para boca" ), o que quer dizer "banalizar a arte"; e por outro lado, sabermos que ela vale sempre como "excepção", que só enquanto "momento especial" e objecto "diferente" ela serve para alguma coisa, é "arte", abre os tais "universos mais", "inquieta", põe a pensar, junta, opõe, cria...

Numa obra de Arte (con)vivem muitas contradições. Sim, a obra de arte que não tem dentro qualquer contradição, que existe fora do conflito e da mudança, conflito e mudança não necessariamente no campo social e político, dificilmente será uma obra de Arte e percebo/aceito até que haja pessoas e instituições que estejam mais sensibilizadas para uma contradição em particular, mas não creio que se possa afirmar que esta ou aquela contradição é mais importante do que outras contradições que uma obra de Arte pode albergar. É legítimo a uma pessoa, a um grupo de pessoas ou a uma instituição manifestarem interesse apenas na Arte que designam por Arte revolucionária, tal como será legítimo a outras pessoas ou instituições interessarem-se em especial pela Arte de rua ou mesmo pela Arte egípcia ou pela Arte celta, mas a Arte será sempre mais do que a Arte que a cada um de nós interessa.

E ainda no que refere à visão do mundo eu pergunto, só para tentar perceber: a cadeira do Marcel Breuer da Bauhaus que aparece reproduzida no pequeno livro que utilizei como Norte deste artigo não poderia ter sido desenhada por alguém com uma visão do mundo completamente diferente? Já não seria uma obra de Arte? Seria um obra de Arte reaccionária? Onde está a visão revolucionária do Marcel Breuer? Confesso que não a consigo vislumbrar na cadeira? E vou pedir desculpa à Eduarda mas, tal como nas conversas que mantive pessoalmente com ela quando conversámos sobre o livro e sobre o que escreveu depois durante o ciclo "Estaca Zero", vou utilizar de novo os exemplos da música. Porque eu acredito que a música, pelo seu lado mais abstracto, nos permite porventura compreender (sentir? intuir?), pelo distanciamento, algo de essencial à Arte: como quando observamos um facto de longe, passado algum tempo. Será legítimo afirmar que a música de Mozart é revolucionária ou conservadora? Falo da música, não do Mozart. E a de Wagner que até foi apropriada pelos nazis? E a de Beethoven a quem sucedeu o mesmo? E Bach que segundo consta na história era um senhor conservador e que aparentemente nada (nada? que nada tão cheio de coisas) realmente inovou; 'limitou-se' ( com que facilidade escrevi limitou-se!) a utilizar tudo o que já tinha sido criado no sistema barroco e a elevá-lo ao patamar da perfeição, de tal forma que depois dele no Barroco já nada mais havia a fazer! A música de Bach contem uma visão do mundo? Qual? E a música do Prokofiev para os filmes de Eisenstein, esses sim com uma visão clara do mundo, não poderia ser utilizada para filmes com outra visão (porventura contrária?) do mundo?

Em minha opinião pode haver Arte que traduza uma visão do mundo, pode haver Arte revolucionária, os filmes de Einsenstein por exemplo (estarei menos disposto a aceitar que possa existir Arte etiquetada de esquerda e de direita, como parece dar a entender a Eduarda, quando muito Arte que certa esquerda ou direita está interessada em desenvolver, estimular, apoiar, utilizar em determinado momento, por razões políticas ou outras), mas também pode haver Arte em que estes atributos são sem significado ou com significado reduzido. A Arte é algo n-dimensional (em que o n é porventura um infinitamente grande).

 

V x E n : n > x       em que n é atributo da Arte!

A dimensão política é apenas uma dimensão!

Nós, humanos, só conseguimos intuir a tridimensionalidade de um objecto, olhando-o de vários lados, e mesmo assim só intui-la, porque a nossa visão é bidimensional. Falo de um objecto físico, de um castanheiro ou de um livro. Nunca conseguiremos realmente ver um objecto em três dimensões. A tridimensionalidade é construída por nós a partir de várias visões bidimensionais e com a ajuda da nossa memória. E se os objectos forem tetradimensionais? E pentadimensionais? Poderemos alguma vez com a nossa bidimensionalidade compreendê-los na globalidade?

Para a mim a Arte é um objecto n-dimensional que para ser intuída nos obriga a olhá-la de muitos lados. Não sei por isso responder de uma forma categórica e precisa à questão: o que é que distingue a Arte de outras coisas? A Arte é algo que traduz um equilíbrio (qual?) nas n dimensões possíveis que a constituem.

Até eu... Cada pessoa é um artista!