Mas afinal porque havemos de ser artistas? - 2
[Rui Ângelo Araújo]


De repente, daqui da periférica transmontanidade, vejo-me solicitado a reflectir sobre a «Arte» (assim, com A grande). Sem grandes pergaminhos para o fazer, faço-o, de qualquer modo.

Como se pode deduzir do título, este meu artigo há-de ser, por conveniência ao debate (ou à diatribe), oposição ao de Renato Roque, publicado aqui na Non!. Isso não desculpará a desonestidade com que o meu texto há-de cruzar-se com o de RR numa ou outra esquina da prosa (ele que me perdoe) — mas explicá-la-á.

Posso começar já a discordar. Para isso, com a devida vénia, cito-me:

— Ler um bom poema traz mais felicidade que escrever os mais maus de todos

ou:

— Ler um bom poema traz mais felicidade que escrever os mais medianos de todos

e porque não?:

— Ler um bom poema traz mais felicidade que escrever os mais belos de todos.

E aqui, algo deprimido, hesito entre continuar a escrever ou correr à estante a buscar, sei lá, o Cesário Verde.

O Herman Hesse que me perdoe, mas eu sou daqueles que encontro mais felicidade na leitura do que na escrita. Antes de mais porque raramente (perdoe-se-me a imodéstia) as letras me foram de feição. E nas alturas em que tive a infantil veleidade de ter alcançado o Olimpo nuns versos eles não resistiram ao raiar da aurora. A alegria tive-a quando descobri que não havia mal nenhum em não ser poeta, porque o tanto que se escreveu e um pouco do muito que se escreve me chegariam para uma feliz (ainda que improvável) longevidade a usufruir da criação dos outros. De resto, fora eu, Camões ou Herberto Helder e o martírio de pôr um ponto final numa obra-prima me traria mais ansiedade e dúvidas do que quanta felicidade e virgens há no céu (supondo que no céu há felicidade — e virgens).

A maioria das questões de Renato Roque sobre a «Arte» e o direito à criação, confesso o cinismo, não me apoquentam. Se se quiser (de novo) chamar «Arte» a qualquer actividade humana, por mim tudo bem — só não vejo razão para o uso da maiúscula. Se a felicidade humana está na frase

— Cada pessoa é um artista!

publiquem-na no Diário da República, façam-na constar dos bilhetes de identidade, que haja cartazes nas ruas... — e reveja-se o orçamento do Ministério da Cultura, nomeadamente a rubrica subsídios. Não serei eu que impedirei ninguém de tentar a sua sorte na arte — seja ela a das letras ou a das tábuas pregadas. E, sim, creio que em toda a actividade humana a criatividade é requisito para o sucesso — e, a par do mérito, devia-o o ser para a promoção no emprego e na escola.

Mas, por mais que nos desfaçamos em solidariedade, a verdade é que, lamento dizê-lo, nem todos somos bons artistas. E aqui é que reside o busílis da questão. Podemos discordar das premissas em que baseamos a nossa avaliação, mas a questão, a verdadeira questão, é a qualidade da obra. Perdermo-nos com falácias como o direito à criação (quem não o tem, por cá!?) não ilude o essencial.

Para cá da utopia, a história continua, e alguns (poucos) hão-de produzir as obras de arte que nós, os outros, havemos de admirar; as obras de arte que hão-de ser a nossa felicidade (sim, nas obras de arte que outros produziram encontro a minha felicidade e dou graças a Allah e deuses afins por me terem posto no mundo com olhos e ouvidos e boca e nariz e dedos para as usufruir — e, já agora, cérebro para as procurar entender).

Uma solidariedade desmedida ou maliciosa e slogans simplistas como

— Cada pessoa é um artista!

pouco mais fazem que iludir os simples, convencendo-os de uma falsa igualdade com aqueles que admiram (quando admiram). A admiração, a noção da distância que nos separa dos que nos causam espanto é motor de desenvolvimento. Que mal tem que uma maioria admire as obras de uma minoria? Que mal tem que nós façamos parte dessa maioria? Pela admiração daqueles que nos são superiores na imaginação, na técnica, na arte é que desejamos suplantar-nos. Também pode ser pela inveja. Mas não é a inveja parte da nossa humanidade? Deixemos que haja diferenças entre os Homens, que haja Homens que nos sejam superiores para que os possamos admirar e invejar. Aí pode não estar a felicidade — mas estará certamente a incontornável realidade.

Falemos então de elites, e de como a Bauhaus, a Eduarda Dionísio e o Renato Roque, para sorte própria, estão inseridos em vários exemplos delas. Sacrilégio, dirá a Esquerda. Inevitável, digo eu. Enquanto a ignorância, a preguiça, a mediocridade, a inépcia e o comodismo se sentirem acobertados com frases como

— Cada pessoa é um artista!

nada muda, excepto a definição de arte. Enquanto alguns perdem tempo a conceder atributos de artista a quem quer ver a arte (qualquer arte) pelas costas, as elites seguem o seu inalterável percurso, e os outros, o grosso dos «artistas», vão descendo os vários degraus da boçalidade. Porque há duas maneiras de cavar o fosso entre o cidadão e as elites: uma é a antiga de manter o povaréu afastado da instrução, da arte; a outra é a actual, a da solidariedade, do paternalismo, a de não exigir do povo que suba os degraus do conhecimento, dos vários conhecimentos.

Não me venham com a ideia de que tudo são obras de arte desde que a análise se faça à luz dum universo próprio. Para o progresso do mundo, e o nosso, o que importa não é esta bondade distribuída a rodos com o fito de tudo valorizar — é a faculdade da distinção, da crítica, é o reconhecimento de que há mau como também há bom, é a visão crua e nua do mundo sem panaceias para as nossas frustrações artísticas.

E — deixem-me extrapolar — não adianta imitar Eduardo Prado Coelho (Mil Folhas, 20/10/01) e argumentar que

— ...qualquer obra importante não pode ser julgada pelas normas que já existiam antes dela, mas, pelo contrário, inventa ela própria a norma pela qual deve ser julgada

desde logo porque a qualificação de «importante» implica preconceitos, ou seja, normas, ou seja, conhecimento.

Mas, sim, estou disposto a concordar que se todos tivéssemos a sensibilidade inerente aos criadores o mundo poderia ser um local melhor. Aborrecido, mas melhor. Agora

— procurar fazer de cada pessoa um criador

soa-me a manipulação genética ou social. Faz-me lembrar as bolsas de criação literária. O que não faria Pessoa se tivesse um desses incentivos à produção...

Sejamos honestos: claro que todo o cidadão tem o direito à criação (quem lho nega? — não reinventou o Zé Cabra o conceito de canção de modo a moldá-lo à sua voz?), claro que no geral das actividades humanas há (pode haver) arte, claro que o contacto com a produção artística ajuda a desenvolver a estima pela arte... E daí? Anulam essas constatações a necessidade de aferirmos as distâncias entre a boa e a arte? Contrariam essas constatações o facto de que é a grande arte que nos melhora a vida, é a grande arte que nos desenvolve, a nós e ao mundo, e que a pequena arte apenas nos vai entretendo os dias? Impedem essas constatações que percebamos que a má arte e a ausência de arte, promovidas, por fraternidade ou espúria magnanimidade, a arte ainda assim, significam paralisia, retrocesso ou o fim da arte?

A clivagem entre criadores e consumidores (uma bem antiga tradição) não tem origem em nenhum Big Brother que disponha da sociedade. A teoria da conspiração cai por terra no mundo real. É o cidadão ele próprio que nada quer ter a ver com a arte, é o cidadão que a rejeita, na escola, na televisão, nos jornais, no dia-a-dia. É o cidadão que inventa e escolhe a música pimba e a literatura light, não por qualquer novo conceito, não por qualquer nova norma estética, mas por comodismo, por facilidade, por acessibilidade, porque ninguém (a Esquerda solidária ou paternalista incluída) lhe exige mais do que o primarismo sensorial, porque a sociedade ama de tal modo a liberdade que tolera a indolência. E faz bem.

E aqui, também eu, cito Eduarda Dionísio

— a Arte nunca poderá ser o terreno do "óbvio" e do "fácil" e nunca poderá coincidir portanto com a "emoção fácil com que todos os dias nos enganam"

para discordar dela na escolha do sujeito oculto da última frase, que desconfio estar relacionado com o «dominados» que aparece umas frases abaixo (ver texto de RR). Não creio que haja que lamentar o cidadão manietado ou moldado — parece-me mais útil e higiénico reconhecer a sua quota parte (e que grande ela é!) no estado pré-larvar em que vive. Vá alguém exigir ao cidadão a sua contribuição para um mundo de «artistas» e verá como o «artista» é criativo a dar à sola ou a escorraçar quem o incomoda.

O direito à criação poderá ser «essencial» — mas nem tudo é democratizável. A arte, a imaginação, o génio não são «exigências da democracia». São atributos que se têm ou não, são dotes que se cultivam ou não. São vocações que se trabalham, se desenvolvem, se aprimoram com inquietude, com esforço árduo, individual, com suor, tempo, estudo, exigência, insatisfação — não vêm com os benefícios redistributivos da democracia. São vocações de que se duvida mil vezes por amor à honestidade, à qualidade, à inalcançável perfeição. À arte. São dúvidas que nos fazem hesitar mil vezes antes de dar a conhecer ao mundo o labor que nos traz apoquentado. São um imperativo da alma — não uma vaidade, uma moda, um sonho, um desejo.

Mas afinal porque havemos de ser artistas se no íntimo não o formos?

That’s the point.

Nov.01


 


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