Mas afinal porque não havemos de ser artistas II ?

Renato Roque Nov. 2001

Sim, porque não?

Ou ainda alguns mal-entendidos entre nós

 

Hesitei se deveria responder de imediato ou deixar assentar algum pó e esperar por mais opiniões sobre o assunto, se aparecessem. Mas ao verificar que algumas das coisas que o Rui Araújo diz poderão assentar de novo em equívocos, resolvi pelo menos esses esclarecê-los.

Ao ler o texto do Rui Araújo a 1ª constatação é de que há muitos pontos que ele apresenta que merecem o meu acordo completo ou pelo menos dentro de determinados parâmetros. Isto não seria de estranhar, pois nós os dois estaremos de acordo com certeza em muita coisa, se calhar na maioria das coisas, se esses pontos não fossem apresentados aparentemente com o objectivo de contrapor àquilo que escrevi.  Portanto das duas uma:

§    ou eu não fui claro e de nada valeu a minha formação na área técnica que na opinião de alguns amigos que leva quase sempre, mesmo quando ouso uma aproximação à área literária, a querer explicar tudo, a querer construir edifícios extremamente (demasiado?) lógicos e sem falhas na sua construção - para alguns a poesia não se quer rigorosa nem exacta.

§    ou então há alguns preconceitos na forma como fui lido, levando a intuir ideias ou conclusões que não estão lá.

 Vou por isso aqui quase limitar-me a listar um conjunto de ideias que o Rui apresenta, com que estou de acordo:

"Porque há duas mane iras de cavar o fosso entre o cidadão e as elites: uma é a antiga de manter o povaréu afastado da instrução, da arte; a outra é a actual, a da solidariedade, do paternalismo, a de não exigir do povo que suba os degraus do conhecimento, dos vários conhecimentos".

 Sublinho o "exigir do povo que suba os degraus do conhecimento, dos vários conhecimentos" e acrescento ter de exigir de nós próprios, para que o povo possa ser ele próprio a exigir, em vez de outros a exigirem por ele.  O meu único reparo é que não há só duas mane iras de cavar o fosso; há mais; outra forma de o fazer é precisamente elitizar a Arte, tal como se pode elitizar a política, ou quase tudo o que importa.

"Para o progresso do mundo, e o nosso, o que importa não é esta bondade distribuída a rodos com o fito de tudo valorizar — é a faculdade da distinção, da crítica, é o reconhecimento de que há mau como também há bom, é a visão crua e nua do mundo sem panaceias para as nossas frustrações artísticas".

O que importa é todos termos essa faculdade da distinção, de crítica, é o reconhecimento de que há mau como também bom. E aqui tenho de voltar ao Luís de Camões:

"quem não sabe arte não na estima"

e  à Eduarda Dionísio

"quem não faz Arte ou nunca fez, de uma mane ira ou de outra, quem não experimenta ou nunca experimentou, quem pensa que não lhe é possível experimentá-lo, dificilmente a estimará"

E sem estima(amor?)  será difícil termos essa tal faculdade de distinção, da crítica, o tal reconhecimento de que há mau e bom. E sermos capazes nós próprios de distinguir o que é mau e o que é bom.

"A clivagem entre criadores e consumidores (uma bem antiga tradição) não tem origem em nenhum Big Brother que disponha da sociedade. A teoria da conspiração cai por terra no mundo real. É o cidadão ele próprio que nada quer ter a ver com a arte, é o cidadão que a rejeita, na escola, na televisão, nos jornais, no dia-a-dia. É o cidadão que inventa e escolhe a música pimba e a literatura light, não por qualquer novo conceito, não por qualquer nova norma estética, mas por comodismo, por facilidade, por acessibilidade, porque ninguém (a Esquerda solidária ou paternalista incluída) lhe exige mais do que o primarismo sensorial, porque a sociedade ama de tal modo a liberdade que tolera a indolência."

Nunca neguei a responsabilidade de cada um de nós, do cidadão se quiser. Tal como também o cidadão é co-responsável pela destruição da natureza, pela delapidação de recursos naturais, pelo modelo de crescimento que lhe proporciona uma "qualidade" de vida de que não quer prescindir, etc. E depois?

"Que mal tem que uma maioria admire as obras de uma minoria? Que mal tem que nós façamos parte dessa maioria? Pela admiração daqueles que nos são superiores na imaginação, na técnica, na arte é que desejamos suplantar-nos. …Deixemos que haja diferenças entre os Homens, que haja Homens que nos sejam superiores para que os possamos admirar e invejar".

Não há mal nenhum. Os homens e mulheres que mais admiro são aqueles e aquelas que me levam a querer fazer alguma coisa, tal como os objectos de Arte que mais admiro são aqueles que me abanam, que me emocionam, que me sugerem pistas, que me abrem portas e me "obrigam", também a mim, com a minha limitação de homem inferior, para utilizar a terminologia do Rui Araújo, a querer criar. Não há que opor o ler ao escrever, não há que opor o ver, o ouvir, o sentir ao fazer.  Não pretendo iludir os simples, limito-me a afirmar que em minha opinião se deve caminhar no sentido de uma sociedade onde todos possam ter a possibilidade de intervir no processo criativo artístico, tal como possam intervir activamente na política, o que só pode ser feito se formos todos capazes de nos exigir:

"esforço árduo, individual, com suor, tempo, estudo, exigência, insatisfação" porque:

"São vocações que se trabalham, se desenvolvem, se aprimoram com inquietude— não vêm com os benefícios redistributivos da democracia. São vocações de que se duvida mil vezes por amor à honestidade, à qualidade, à inalcançável perfeição. À arte. São dúvidas que nos fazem hesitar mil vezes antes de dar a conhecer ao mundo o labor que nos traz apoquentado. São um imperativo da alma — não uma vaidade, uma moda, um sonho, um desejo.

Não se trata portanto uma ilusão mas uma proposta que implica esforço árduo, individual, com suor, tempo, estudo, exigência, insatisfação e ter de prescindir do comodismo e da facilidade de que fala.

Nota: todas as citações excepto a de Luís de Camões e da Eduarda Dionísio são do Rui Araújo

 

  Renato Roque 31/0ut/2001