Se o Duchamp deu um nó,
ele
está nas nossas cabeças
Mais uma vez um artigo de Affonso Romano Sant’Anna
na NON é motivo para eu tentar arrumar as minhas ideias. Lá volto eu a
montar o plano inclinado na sala e a fazer rodar as palavras, manobrando com
agilidade a caneta e o plano. No fim, procuro as palavras que se extraviaram por
debaixo de todos os móveis da sala onde realizei a experiência. E com as
palavras que recupero escrevo o Post Scriptum.
No artigo “Onde o nó foi
dado” de Sant’Anna a ideia central parece ser de que é necessário
encontrar um critério, uma metodologia que nos permita distinguir a arte da
não-arte.
Ou seja desfazer o nó que na opinião de Sant’Anna foi dado à arte por
Duchamp.
De facto, se é possível dizer
com precisão quando um determinado objecto é uma cadeira, ou uma bicicleta; se
é possível determinar com rigor a composição química de qualquer substância;
se é mesmo possível decifrar o código genético de cada um de nós e afirmar
com precisão se o leitor tem olhos azuis ou castanhos, não precisando sequer
de lhe retirar os óculos escuros por detrás dos quais se esconde, e finge ler
com atenção este artigo, porque não haveremos de ser capazes de ver com
clareza o que é arte e o que não é arte, embora possa parecer ser?
Esta demanda de Sant’Anna é
à partida uma proposta aliciante e poderá seduzir alguns. Isto apesar de as
certezas que até na Ciência existiam e que dominaram todo o pensamento
determinista do século dezanove serem hoje confrontadas com incertezas, com
leis da natureza que em vez de se apoiarem sobre certezas se apoiam antes sobre
possibilidades ou probabilidades e que nos levam a questionar aquele mundo
determinista onde a Ciência nos permitiria dar todas as respostas e até prever
o futuro.
Seria também indubitavelmente
um resultado útil, se viável, para ajudar a distinguir o gato da lebre e gato
por lebre é o que mais por aí abunda e não falo de culinária. Quando na própria
Ciência, supostamente baseada no rigor, em metodologias cientificas e em métodos
experimentais tanto gato por lebre parece por aí existir, uma metodologia para
distinguir a arte seria sem dúvida bem vinda, ainda que o resultado pudesse
hoje apenas também ser do domínio das probabilidades: arte com 95% de
probabilidades ou com 80 % de probabilidades. E com toda a certeza a polémica
voltaria a estrondosamente estalar se um qualquer objecto, baseado na
metodologia, pudesse ser arte com 50% de probabilidades – resultado porventura
comum para os projectos artísticos mais inovadores?
Mas eu tenho de confessar que
esta tentativa de encontrar regras para etiquetar a arte me parece uma empresa
destinada ao fracasso. E isto porque de facto a arte não existe.
Existem cadeiras, bicicletas, desenhos, pinturas ou esculturas, mas a
condição de objecto de arte é apenas um atributo que em determinado contexto
civilizacional, cultural, geracional, social ou político, determinadas pessoas
dão a esse objecto. Essa cadeira, bicicleta, pintura ou escultura podem ser
considerados objectos de arte ou não. Considerados por alguns, é necessário
realçar. Pela maioria eventualmente, através de processos de ideologia
dominante. Um objecto que hoje e aqui neste lugar é considerado por alguns como
arte, com certeza nunca o seria aqui
há cem anos atrás, como não será considerado arte mesmo hoje noutro contexto
civilizacional-cultural, e porventura um objecto idêntico nunca será
considerado um objecto artístico dentro de alguns anos, mesmo aqui no mesmo
lugar. Um dado novo neste processo de classificação de um objecto/projecto
como arte será o fenómeno de globalização dos critérios artísticos mas,
mesmo no quadro dessa globalização, se os critérios variam menos no espaço
variam talvez mais no tempo. Por isso, quando muito poderemos discutir, por
exemplo, o que era arte para os renascentistas, ou para os impressionistas, para
os comunistas durante a chamada construção socialista a leste, para os
neo-realistas, para os chineses no século XVI.
Ou poderemos ainda discutir entre nós qual a arte que me interessa a mim
ou a Sant’Anna.
Poderíamos voltar neste ponto
a Todoli e ao artigo anterior “Afinal não foi xeque-mate foi xeque ao rei”,
artigo suscitado pela entrevista de Todoli à revista Pública. A ideia de
Todoli, e de outros com ele, parece resolver a questão. Defender que “Arte é
tudo o que os artistas afirmam ser arte” poderá parecer ser o ovo de Colombo.
Genial! Mas infelizmente é necessário constatar que Todoli se esqueceu de nos
dizer quem diz e como diz, que o senhor A é um artista e como tal tudo aquilo
que ele afirme ser arte, é arte, e ponto final.
Quando afirmo que me parece que
esta tentativa epistomológica está votada ao fracasso, não pretendo concluir
que a arte se não discuta. Mas há que clarificar o que importa discutir,
quando e em que contexto.
E o que importa sobretudo
discutir de uma forma alargada são os mecanismos, em particular os mecanismos
de poder, não só do poder político e económico mas também cultural,
comunicacional, etc., que permitem fazer a escolha desses artistas, promovê-los,
institucionalizá-los, para a seguir eles poderem encher o peito de ar e dizer
“Isto é arte!”. E é! Acreditem!
O que importa é criar condições
para que sejam os próprios artistas a conduzir o processo artístico, em vez de
umas figuras intermediárias, cinzentas, que lhes passam o cartão do Clube dos
Artistas que lhes dá o direito a dizer “Isto é arte!”
O que importa é que sejam os
próprios artistas a definir a arte que querem fazer, sem dependerem de apoios,
subsídios estatais ou outros, ou de serem filiados no Clube.
O que importa também é
desenvolver o sentido crítico das pessoas para se atreverem a gritar quando
lhes apetece “O rei vai nu!”, perante qualquer artista encartado que
proclame “ Isto é arte!”. Mas também serem capazes de mudar de opinião,
se o artista os convencer de que afinal o rei vai mesmo vestido e bem vestido.
E para tal o que importa afinal
é subverter. Há algumas semanas li em Paris uma notícia no Figaro que não
creio ter sido divulgada em Portugal e que me fascinou. No Guggenheim de Bilbau,
durante uma exposição, um grupo de pessoas dependurou um quadro pirata chamado
“Turbillon d’amour”, pretensamente doado pelo mecenas Annike Barbays, sem
ninguém ter dado por nada. Depois filmaram a reacção das pessoas que
visitavam a exposição. O lixo lá ficou perfeitamente integrado na exposição
e ninguém questionou o que quer que fosse. Mais tarde essas pessoas, que se
auto-intitularam um colectivo de intervenção artística Mike Nedo, realizaram
uma conferência de imprensa embuçados, onde declararam ter dependurado um
quadro-lixo na exposição para contestar a arte e instituições como o
Guggenheim. Curiosamente, ou talvez não, a administração do Guggenheim, tão
dada a vanguardismos na arte, parece que não gostou nada e reagiu indignada,
determinada em identificar os energúmenos que se atreveram a vandalizar a
catedral da arte, para os fazer responder por tão monstruoso crime.
Sim o que importa é subverter.
Se eu pudesse influenciar um desses senhores cinzentos com acesso aos tais cartões
de artista, proporia um cartão de membro honorário a cada um dos elementos do
Mike Nedo.
Afinal o que importa é
desfazer o nó que cada um de nós tem na cabeça e participar de uma forma crítica
e se possível activa no processo de criação artística, escolhendo cada um de
nós a arte que nos interessa. Vem a propósito uma outra história passada num
hospital psiquiátrico. Dois doentes tinham combinado fugir do hospital no dia
seguinte e combinado o plano para a fuga. “Se a cancela de segurança estiver
baixa, passamos por cima, se estiver alta, passamos por baixo”. No dia
seguinte um dos doentes vem acordar de rompante o outro e comunica-lhe que a
fuga estava condenada. “ Não podemos fugir, pois desfizeram a cancela!”
Renato Roque, Março 2003
PS: o que importa é ter havido tipos como o Duchamp, que nos obrigam a
questionar as coisas, mesmo quando as respostas não nos satisfazem e parecia
ser tão mais fácil não ter chegado a levantar a questão.
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