Onde o nó foi dado
Affonso Romano de Sant'Anna
Certa vez li que, diante do teorema de
Pitágoras: - "num triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa
é igual à soma dos quadrados dos catetos" -, o matemático Jevons
indagou-se: "Resta saber se trata realmente de um triângulo retângulo".
Essa inquietação é aplicável a vários
domínios do conhecimento humano. Fazemos afirmações que, de tão lógicas,
nos dispensam de pesquisar se as premissas são verdadeiras. Ora, a
epistemologia (ou teoria do conhecimento) é um ramo da filosofia que se
baseia numa questão muito simples: quando alguém afirma alguma coisa,
de que ponto de vista está fazendo esta afirmação? Ou seja, nossas
frases e afirmações não nascem desenraizadas, os pensamentos e os
gostos nascem de algum pressuposto. Nossas manifestações carregam
conteúdos psíquicos, sociais, econômicos, culturais e têm motivações
várias.
Se na culinária, o material dos utensílios
e a natureza do próprio fogo (se é de lenha ou de gás) alteram o
gosto do alimento, se na pesquisa em laboratório o olho e a consciência
do pesquisador interferem no objeto estudado, quanto mais em relação
às palavras que pretendem traduzir o mundo, os sentimentos e situações
e vivem deslizando seus significados.
Perguntar pelo sentido original e originário
é querer entender a que sistema de relações as coisas, pessoas e
palavras estão presas, pois funcionam em interação, contra ou a
favor, às vezes ambiguamente, ou, mesmo quando parecem neutras, não são
neutras, alguma troca existe entre elas e o resto do sistema.
Daí que as próprias idéias de acaso e de
aleatório já foram estudadas, mostrando-se que existem também leis,
princípios e constantes que as equacionam. Na Física, a teoria do caos
chegou a estipular que a passagem de um sistema para o caos pode ser
representada por uma constante, que é o número 4.669.201.609…
Portanto, é possível e necessário que se discuta e se tente entender,
o que ocorreu com a arte dentro da modernidade. Pois quando alguém
afirma que algo é arte está exercitando princípios/verdades
conscientes ou não, que devem ser testados.
Um edifício mal calculado desaba. Uma
cirurgia mal feita mata ou aleija. O executivo ineficiente é mandado
embora. O operário que não produz é despedido. Em outras áreas
existe, portanto, uma correlação entre a proposta e realização. Até
mesmo de um bandido da máfia, cobra-se alguma (aliás, muita) coerência.
Se ele falha em relação ao sistema é eliminado. Ele sabe, portanto,
que existem regras. Igualmente, quem se assenta numa mesa para jogar
deve saber antes as regras do jogo. Até o carnaval, que parece o espaço
da permissividade total, tem suas regras.
Por que se pretende que a arte seja um espaço
onde não há regras e normas, onde tudo equivale a nada, nada equivale
a tudo, ou seja, onde qualquer coisa que se apresente como arte por alguém
que assim a nomeie, deva ser aceito como tal? Por que essa sensação de
desconforto diante da questão do "valor", da
"qualidade", da "técnica", do "estilo",
como se esses fossem atributos inconvenientes, desnecessários?
É difícil chegar a um entendimento mínimo
numa discussão se alguém fala chinês, outro sânscrito, outro latim.
Até mesmo quem sabe esperanto vai se perder nessa discussão. Para que
as pessoas se entendam é conveniente que se entendam sobre o
significado ou significados das palavras que estão usando. Até dentro
de uma mesma língua, não posso usar a palavra porta, quando estou
querendo dizer a palavra vaca, não devo usar o termo girassol quando
estou me referindo a peixe-espada.
Portanto, temos que nos entender
minimamente sobre a palavra arte, como sobre a palavra inteligência e a
palavra conceito/conceitual. Será que certas coisas que se apresentam
como conceito são conceito, ou um amontoado de vagas idéias? Será que
certas coisas são mesmo inteligentes? Por questão de método não devo
dizer que arte é qualquer coisa que chamo de arte. Arte é uma palavra
que tem um radical que vem do indo-europeu. E os radicais das palavras
é que organizam o sentido delas. Por exemplo: o radical de arte ("art")
que aparece em artelho, articular, artigo, artimanha, artesanato, etc.
sempre indica a capacidade de ordenar, dar sentido, configurar,
organizar, sistematizar, revelar. E arte é a articulação do sentido
num nível superior, que vai do encantamento ao terror, do sublime ao
grotesco, passando por uma infinidade de estágios igualmente
arrebatadores, pungentes, inteligentes e mágicos. Portanto, nesse
conceito, arte não é o "indiferente", o
"indiferenciado", o "entulho", o "caos".
Ao contrário, a arte resgata o caos no cosmos propondo um caosmos.
Na verdade a teoria e a prática artística
ficaram paralisadas desde que no século passado Marcel Duchamp propôs
que qualquer objeto poderia ser obra de arte. E quando Pierre Cabanne,
em 1967, lhe perguntou: "Afinal o que é arte? ". A esperta
resposta de Duchamp foi outra pergunta: "O que não é arte?".
A partir daí ocorreram duas coisas:
abriu-se a porteira: inúmeras e despreparadas pessoas passaram,
autorizadamente, a se julgarem artistas. Em segundo lugar, criou-se uma
paralisia teórica e a prática artística caiu numa aporia, numa
entropia, numa anomia geral.
Portanto, a melhor maneira de começar a
considerar criticamente a questão da arte é retomá-la onde ela foi
congelada, imobilizada. Não adianta os mais aflitos perguntarem ao
conferencista, ao professor: "Afinal, o que é arte?". Essa é
uma pergunta pré-Duchamp. Para respondê-la, quem sabe, um dia, é
necessário começar pelo fim, ou seja, do nó que o próprio Duchamp
deu: "o que não é arte"?
E para isto, repito, é necessária uma
leitura multidisciplinar daquilo que não sendo arte tem sido
apresentado como arte.
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santanna@novanet.com.br>
01-03-2003
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