É impossível preencher os lugares vazios dos que não ficam para sempre no mesmo lugar

Ao olhar se devolve, subtil

 
É uma paisagem corroída de negrura
pela noite, uma aragem ferindo as mãos, os ardentes dias,
um alfabeto de tábuas
e verniz cobrindo o peito
 
O rio é um rosto estendido
entre pedras e ramos, adornando o sol
com paredes de xisto e estacas de lama
 
É um rosto que cai, aflito, entre
a noite e os dedos, embatido
por ácidos, uma fotografia,
um enunciado mecânico, uma referência fílmica
desconcertante e infinita
 
Ao olhar se devolve, subtil
e adjacente, a transcendência
dos barcos, seus indecifráveis
e ignorados rumos, a sedução
dos corpos trava a brisa
do entardecer, os simulacros
mais invisíveis da pele, um rosto
antigo como um retrato
 
É uma ilustração o zumbido das vozes
ocultas entre penedos e silvas, viciam
o silêncio das garças, seus determinados voos
em contraluz à plenitude
da água que se instala doce
nas rendilhadas margens
 
O rio é uma violência hermenêutica, um simulacro
abusivo do olhar, o lençol da morte, o invisível
selo de um rosto devolvido
ao seu mais secreto silêncio
 
Pela cesura dos dias, seus meandros
melancólicos, o rio tem um ritmo largo,
um quadril lento, é uma citação
às tintas gastas da memória,
às mulheres em seus xailes e aventais,
a hortaliça e peixe, flores,
pombas, rolas, galinhas e coelhos,
aos apressados e nocturnos homens
formosos em seus desmesurados passos
de dança e ilusão
 
Quando a claridade da luz canta sílaba
a sílaba a noite do mundo, quando
as palavras esticam as cordas de papel
dos poemas, quando aguardam os nossos
lábios e se abatem silenciosas sob o nosso
olhar oferecendo o parapeito da alegria
à falésia dos dedos, removendo da escuridão
o túnel da música, as palavras todas,
admiráveis sob a pele adormecidas, cavam
rios de estilhaços nas sombras do deserto,
surpreendem a alma com as labaredas ferozes
dos dias —, quando a febre da tua cabeça queima
a água e a terra e o céu e o frio dos lugares,
os pássaros descobrem entre o nada
e a fulgurante melancolia de um verso
a caligrafia da tristeza e da paixão,
as ânforas da ferrugem
do esquecimento
 
Recorto sombras sentado na manhã dos dias frios com um olhar triste.
É impossível preencher os lugares vazios dos que não ficam para sempre
no mesmo lugar, distante é a voz dos confidentes, as tentações que anoitecem
no fio desagregante do horizonte
 
Subitamente o vento canta na voz que narra e se esconde como os muros guardam as macieiras, os campos de trigo ou os labirintos breves do que sangra e
definitivo adormece.
Lês, e o instrumento de poder do que lês alicerça as árvores,
os ninhos da imaginação, o rio onde cedo mergulhaste dedos,
olhos e mediste a infância
 
O que frágil subsiste errante permanece. A dúbia luz
desvanece a catástrofe, o fulgor culminante do invisível.
 

Jorge Velhote 2006

 

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