Sobre o rio     

Estas imagens fotográficas do Douro, produzidas num tempo em que o conceptualismo varreu a história das nossas preocupações, não são, não poderiam ser, exemplarmente neutras. O rio carrega consigo mais do que uma história colectiva, impõe a sua presença, que emerge nas tramas e brechas da paisagem das suas margens e na turbulência dos seus afluentes, mas a razão de ser de um rio é, antes de tudo, o seu percurso. É essa também a razão destas fotografias. Do Douro internacional à Foz, onde as águas do rio atravessam, sem mistura, as águas do mar, quatro autores reconhecidos simbolizam, com enquadramentos de paisagem, o que entendem sobre o rio. As imagens são sínteses de 4 espaços do percurso, 4 olhares diferentes sobre o Douro, 4 sentidos de vida onde a possessão – essa barroca possessão contemporânea que espreita a sociedade da comunicação e do cansaço – significa, antes de tudo, o ser despossuído de identidade.

E então, como o Douro no seu curso, acompanhamos essa descida, sentados na sucessão de horizontes, que Duarte Belo nos reproduz. O rio desliza ao fundo, estreito e parecendo mergulhar num interior ocultado, por entre fragas arredondadas de verde. Aqui e ali há feridas brancas na paisagem, caminhos, restolho morto, enigmas de ser. Duarte Belo ilumina os seus cinzentos com o minucioso controlo do pormenor e da espessura táctil, como se construísse uma maquete do mundo, onde o chão se elevasse à altura dos olhos; o díptico entre o geral e o particular, o longe e o perto desarticula-se e vemo-nos a procurar a evocação de cores e ventos e, na calma do dia, pesquisar o céu das aves migrantes. É a dureza do vai-vém do tempo geológico que invade ou bloqueia os trilhos de cabras que Duarte Belo nos traduz com precisão de arquitecto: estruturas, resistência de materiais, planos de fractura, o tempo que passa.

Na corda bamba do confronto, entre a literatura e o realismo cultural do olhar, os enquadramentos plenos de paisagem de Renato Roque, tendem a ocupar o espaço todo, a sair das panorâmicas para um alheio fora de campo que não conseguimos adivinhar. Ou a crescer em altura, como vitrais de um gótico qualquer. É nas perspectivas das barragens que reencontramos dois dos elementos mais pessoais, com que este fotógrafo constrói o sentido das suas fotografias, a ironia poética – aquelas geometrias da curva do cimento que derivam em arquitecturas impossíveis – e o misticismo destas suas catedrais contemporâneas. O código simbólico de Renato Roque parece repousar nas associações de uma linguagem que é excessivamente rica e que insinua nos diversos discursos o permanente litígio entre o pólo cognitivo e o pólo poético, o que dá espessura às nossas interpretações. Mesmo nas imagens do rio a água é muito negra e premonitória, nas margens, a indeterminação apura-se em detalhes de ornamento.

Homem do sul, José Manuel Rodrigues não se apazigua com a frequência da serra, com o acumular dos referentes da vinha. A janela dupla deixa-nos ver o Douro vinhateiro, um olhar claro à direita, a opacidade, (da fotografia, da produção?) à esquerda, fazendo esta imagem parte da temática da divisão do mundo que José Manuel Rodrigues tem desenvolvido a partir de um eixo colocado ao centro de muitas das suas fotografias. Não se pode, nunca se pode, retirar o projecto simbólico arquetípico das imagens deste autor. Ou o jogo das aparências que a fotografia promove e são razão da demanda do fotógrafo, uma forma sua de actualizar os diversos criticismos da reflexão fotográfica. Não se trata de produzir imagens construídas. Nesta série José Manuel Rodrigues deixou que o seu conhecimento do mundo e da fotografia se conformassem numa estética da surpresa que constrói mais com o corpo do que com a câmara.

O rio recupera a sua largura de rio-mar em Crestuma, antes de sair, na barra. É o que nos lembra João Paulo Sotto Mayor, que o conhece bem. Na distância entre as margens afundam-se as brumas e o ar é refractado. É essa, manhã cedo ou, por vezes, à noite, a tonalidade difusa sobre um movimento abespinhado das águas. Aqui e ali vegetam restos de embarcações que deixaram de ter sentido, e a superfície enruga-se de movimento, -  aquele picado de rio apressado para o mar. Pela via fluvial oscilam barcaças, velhas e novas, por vezes lanchas ou botes modernos, a mole da água pode ser branca de leite ou negra de um óleo luzidio. Na barra da Foz, o fotógrafo mostra-nos esses poucos dos últimos homens que inventam um mundo tranquilo e um rio renovado, os pescadores de Domingo e, porque a memória é que sabe destas coisas, fantasmas vários vão e vêm por entre a razão e a saudade, como aqueles espíritos do que já foi, quando o Douro era a estrada real dos caminhos do Norte. 

Maria do Carmo Serén - 2006

 

 

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