Foi no planalto mirandês, nesse inverno chuvoso de fim milénio para alguns, de início de milénio para outros, que descobri aquelas ervas onde se deita o silêncio e, tímido, me deitei ao seu lado pela primeira vez.
E a primeira vez, mesmo quando marcada pela inexperiência mais grosseira, é sempre especial. Há o deslumbramento.
E houve as ervas, as pedras, as gentes, o rio.
E as barragens, objectos estranhos pousados na paisagem, encravados na pedra escura. Edifícios majestáticos, catedrais ao rio, onde a dimensão mística do espaço nos esmaga e nos obriga a pensar em deus.
Eram as mesmas barragens de que me lembrava longinquamente na minha infância, nas férias passadas em casa dos meus primos em Miranda e em Bemposta. Ou não eram?
Onde estão os camiões a roncar, a subir lentamente a estrada íngreme, carregados de pedra, extraída do leito do rio? Onde está a minha tia a preparar sandes de queijo e marmelada, que eu comia esfomeado, estendido na cama a ler as aventuras dos Cinco?
As barragens, nesse Inverno de chuvas torrenciais a encharcar a paisagem, com as comportas todas abertas, a deixar passar aquela massa de água ensurdecedora, a correr para o mar.
O planalto passou a ser, a partir daí, destino frequente de caminho e uma fonte inesgotável de viagens fantásticas no mundo das imagens. De Sendim a Constantim, de Mogadouro a Miranda, sempre a roçar com os dedos, ao de leve, as ervas douradas e a ouvir as gaitas de foles e o rufar dos tambores do Galandum.
Houve o deslumbramento. O tempo amadureceu este amor. Não que eu não acredite em amor à primeira vista. Eu acredito em que tudo é possível, sobretudo aquilo que não parece possível.
A natureza nunca deixou de me surpreender. É por isso que eu sou, por princípio, um céptico, e é essa uma das razões por que fotografo.
Fotografo para acreditar. Acredito naquilo que fotografo, o que não quer dizer que seja verdade.
Fotografo para lembrar, que é como quem diz, esquecer tudo o resto, o que quero esquecer, ou o que não interessa.
Porque, na verdade, só interessa aquilo em que acreditamos, ou queremos acreditar, que é muito pouco.
Renato Roque 2006