A floresta d’ouro

Escrevi a história "A floresta d'ouro a partir de um conjunto de imagens que integram o projecto Paisagens de Silêncio. Foi publicada no desdobrável editado para a exposição realizada no Teatro Gil Vicente em Coimbra em 2004.

Na aldeia ninguém se atrevia a entrar na floresta mágica. Tinham medo do brilho que diziam podia cegar as meninas dos olhos. Batiam com as palmas das mãos nas pálpebras fechadas e repetiam alto “T’arrenego, t’arrenego, t’arrenego”, três vezes, de cada vez que alguém mencionava o nome da floresta maldita. Mesmo os campos próximos da floresta dourada eram deixados ao abandono, pasto para matos e giestas, onde nem as cabras mais afoitas se atreviam a roer sustento. As gentes da aldeia contavam uma história antiga de um rei vaidoso e ambicioso que não contente em pedir aos Deuses o toque de Midas, o poder de transformar em ouro tudo aquilo em que tocasse, reclamou o dom extraordinário de transformar em ouro tudo o que visse com os olhos. Os Deuses concederam-lhe o que pedia e cada vez que olhava à sua volta transformava em ouro tudo o que o rodeava. Objectos, árvores, animais e gente foram transformados em estátuas douradas. Em breve o rei estava só, num jardim de esculturas esplendoroso. Esse olhar de Midas matou-o quando, ao aproximar-se de um lago, olhou a sua imagem reflectida pelas águas e se transformou ele próprio numa bela estátua de ouro fundida. A gente da aldeia dizia que o olhar poderoso do rei tinha sido engolido pela água do lago e quem se atrevesse a olhar a sua imagem reflectida por essas águas terríveis seria transformado também numa escultura dourada.

Sadim lembrou-se dos seus tempos de criança. Tinha sido avisado e castigado duas vezes por se ter atrevido a rondar a floresta mágica. Da primeira vez ia a correr atrás de um cachorro que brincalhão se atrevera a enfiar pelo emaranhado de giestas e que depois, incapaz de encontrar o caminho de volta, gania a pedir a ajuda do dono. Orientado pelos ganidos e pelos latidos do animal, Sadim encontrou o cãozito preso no meio de um giestal quase intransponível. Ao pegar ao colo no animal assustado, do seu lado direito, um campo quase limpo de giestas deixou-o antever ao longe um reflexo dourado, causado pelo sol baixo do fim do dia. À noite contou ao pai a aventura do Zarolho, assim se chamava o cão, por parecer ter um olho meio fechado, coberto por um tufo de pêlos cinzentos, e o pai, para além de o proibir de se aproximar da floresta, avisou-o que se tal voltasse a acontecer lhe daria uma surra a sério e, se não fosse a mãe, teria despachado o Zarolho que, como que compreendesse o que se estava a passar, se encolhia contra o colo protector do Sadim.  

Mas uns dias mais tarde o Zarolho voltou a fugir ao dono e a perder-se mais uma vez no mato perto da floresta. Sadim lembrou-se das ameaças do pai mas não foi capaz de deixar morrer o animal e entrou de novo no giestal, munido de um cajado e de uma faca, à procura do Zarolho. Desta vez não foi tão fácil encontrá-lo. Sadim gritava o nome de Zarolho e avançava a custo num giestal tão denso que por vezes, rodeado de gestas e silvas, pensava que ele próprio estava prisioneiro do mato, perdido para sempre. Mas tinha bom sentido de orientação e ajudado pelo pau e pela faca, prestando atenção ao ganir aflito do cachorro à distância, lá acabou por descobri-lo. Mas dera tantas voltas que ao tentar regressar, apesar do seu bom sentido de orientação, por engano abriu caminho na direcção da floresta, em vez de tomar a direcção da aldeia. E por isso ao fim de muito tempo, de avanços e recuos causados pela densidade da vegetação, não conseguia encontrar a saída para voltar para casa. E a noite caiu e Sadim apavorado no breu da noite sem lua, agarrado ao Zarolho, procurou o conforto de uma cama feita de fetos e de gestas.  

O sono foi intermitente, entrecortado por imagens quase reais criadas pelo medo. Imagens de bestas e de seres terríveis que o ameaçavam e o obrigavam a fugir. Na fuga as gestas fustigavam-lhe a cara até atingir uma clareira e mergulhar nas águas geladas de um lago dourado, onde paralisava, transformado em metal frio.  

Na manhã seguinte acordou a tremer de frio e apalpou os braços para comprovar que ainda eram de carne e osso. O Zarolho viu-o abrir os olhos e lambeu-lhe a face de contentamento. Ao olhar à sua volta Sadim verificou então que estava mesmo no limiar da floresta proibida. À sua frente, a poucos metros, uma paisagem deslumbrante, dourada, como nunca tinha visto, era ao mesmo tempo bela e aterradora. Per mane ceu alguns minutos estarrecido a olhar aquela cor mágica até que se lembrou do pai e das suas ameaças. Pegou no Zarolho ao colo e iniciou o regresso à aldeia, afastando-se da floresta. Agora sabia a direcção a prosseguir para voltar a casa. Sabendo agora bem em que direcção avançar não demorou muito a chegar à orla do giestal e a ver as primeiras casas do povoado. Ao entrar em casa ouviu um choro abafado de mulher, vindo do fundo, do escuro da cozinha. Reconheceu o soluçar da mãe. Quase não teve tempo de gritar “Mãe!”. As mãos da mãe abraçaram-no e ele sentiu as suas lágrimas mornas escorrer pela face.  

- Onde te meteste? O teu pai saiu ontem ao fim do dia como um doido à tua procura. Levou o Saloio com ele e ainda não voltou!

Sadim teve de contar à mãe o que lhe acontecera. A mãe ouvia e de vez em quando repetia os “T’arrenego!” da tradição e  “Meu Deus! Meu Deus!” e levava as mãos à cabeça. No fim da narrativa sobressaltada de Sadim, a mãe só temia pela reacção do pai. Muitas vezes o tinha visto fora de si e quando isso acontecia nada de bom se podia esperar.  

-       Vamos ter de inventar uma história para contar ao teu pai. Vamos dizer-lhe que tropeçaste quando regressavas da nossa leira e que bateste com a cabeça numa pedra e que só acordaste esta manhã.  

-       E o pai acredita? Com certeza que me procurou no caminho da leira. – perguntou o Sadim a quem desagradava ter de mentir, pois ao fim e ao cabo se tinha desobedecido ao pai fora para salvar o Zarolho e considerava que não merecia castigo forte. Mas o pai era um homem justo mas duro, por vezes quase cruel, e ele sabia-o bem.  

-       Vai ter de acreditar! – disse-lhe a mãe e encaminhou-o para junto da lareira, onde lhe entregou um prato de sopa fumegante e um naco de pão barrado com azeite que ele engoliu sofregamente. Só nesse momento se apercebeu da fome que tinha. O Zarolho pôs-lhe as patas nos joelhos e emitiu pequenos sons de submissão e ele foi-lhe dando pequenos pedaços gordurosos de miolo.  

Quando o pai chegou, desesperado depois de uma noite de busca infrutífera e deu de caras com o filho sentado à beira da lareira junto à mãe, pareceu que era capaz  de o desfazer, pois adivinhava o que acontecera. O Zarolho saltou do colo de Sadim e correu a esconder-se por debaixo do móvel desconjuntado no canto da cozinha, onde se arrumavam os poucos cacos da família. Mas a mãe imediatamente protegeu o filho atrás de si e desfiou ela a história que preparara tão bem como soubera, enquanto esperara. Uma história mal alinhavada acerca de um lobo e de uma fuga precipitada de Sadim, trepando a um carvalho, onde fora obrigado a passar a noite. O pai, mal convencido, virou-se, berrou um conjunto de palavrões e saiu novamente, batendo a porta atrás de si.  

Sadim lembrava-se desse dia como se fosse hoje. Aquele dia mudara a sua vida e ele ao ver o pai sair, sabia já que um dia, quando fosse um homem feito, iria voltar à floresta. Não sabia porquê, só sabia que o faria porque tinha que o fazer.  

Após a segunda fuga de Zarolho Sadim não mais se aproximou da floresta, até sentir que o dia da visita chegara.  

O Zarolho crescera e tornara-se um cão meigo e preguiçoso que o acompanhava para todo o lado e que nunca se afastava mais de alguns metros. O pai envelhecera. A maleita que o tolhera dera rapidamente cabo dele. Nos últimos tempos  antes de morrer já não era o mesmo homem. Sadim preferia recordar o homem duro àquele farrapo que se arrastava da cama para o escano, da vida para a morte. A mãe continuava a mulher atarefada que sempre conhecera, embora já lhe custasse dobrar o corpo para mexer a ceia nos potes de ferro, ao lume.  

Sadim regressava finalmente à floresta. Como tinha compreendido naquele dia longínquo, como se um feitiço antigo germinasse dentro dele e lhe comandasse os pés.  

Abriu caminho no giestal como fizera em garoto, com um cajado e uma faca de mato, até atingir a orla da floresta proibida. Olhou e quase não hesitou pois a decisão era antiga e estava já enterrada bem fundo. Caminhou devagar, sempre muito devagar, pois queria olhar e ver tudo à sua volta. Parecia mergulhar numa câmara de silêncio amplificado. Parecia-lhe ouvir o som do seu próprio corpo, como se os seus ossos, ligamentos, músculos gerassem sons inaudíveis que ele recebia. Os pés assentavam numa erva d’oiro, fofa e macia, que lhe amortecia o andar. Baixou-se, com delicadeza abriu as duas mãos e tocou ao de leve com as palmas abertas aquela erva rendada, enfeitada pelas gotas de orvalho, que lhe fez cócegas e que vibrou, como que agitada por uma mola mecânica. A sensação era extraordinária, como que tocar as nuvens ou a neve fria, depois de um nevão. Ao mesmo tempo sentiu uma sinfonia de cheiros, todos os cheiros que tão bem conhecia, o cheiro da terra, o cheiro da palha, do orvalho, da hortelã e do rosmaninho, alguns não conseguiu identificar, só lhes identificou o tempo e era um tempo de há muito. Ergueu-se novamente e continuou a caminhar. O caminho era ladeado por árvores de tronco e ramos quase negros que realçavam o dourado do trilho. De onde a onde despontavam manchas de verde, mas era um verde diferente daquele que ele conhecia dos campos da aldeia. Era um verde brilhante, a rimar com o dourado do chão onde se vertia. Sadim não sabia se passou muito se pouco tempo. De repente abriu-se uma clareira larga, ladeada de arbustos também dourados, e do outro lado viu o lago.  

Sadim aproximou-se devagar, temeroso. As histórias das gentes da aldeia passaram-lhe rapidamente pela cabeça. Na margem, colocou a mão direita no tronco escuro e rugoso de um castanheiro vetusto, debruçou-se e viu-se reflectido pelas águas. Olhou para a mão esquerda e aproximou-a dos olhos, como num efeito de ampliação, para confirmar que se não transformara em estátua. A mão, o braço e os pelos eriçados, dourados pelo sol, pareciam não ter sido afectados. Sadim sorriu.  

-       Mas afinal porque contam todas aquelas histórias? – perguntou em voz alta Sadim.  

-       Porque quase sempre o homem prefere conviver com o medo conhecido a ter de enfrentar o desconhecido.  

Sadim, espantado, olhou à sua volta. Parecia ter sido o lago que respondera. Era impossível. É verdade que a voz parecia ter soado dentro da sua cabeça, mas como que ecoada a partir das águas do lago. Era uma voz que quebrava o silêncio imponente, mas sem o romper. Não conseguia explicar melhor, porque não conseguimos explicar aquilo que é novo.  

-       Lago, és tu que falas comigo? – perguntou, olhando à sua volta instintivamente, confirmando que não havia ninguém.  

-       És!  

Sadim não falou durante algum tempo. Olhava as águas espelhadas do lago que reflectiam as copas nuas das árvores à volta.  

-       Que querias dizer quando afirmaste que o homem prefere conviver com o medo? – perguntou finalmente.  

-       O homem prefere conviver com os medos que conhece, com os seus medos domesticados, os seus fantasmas educados. O homem não consegue viver sem responder às perguntas que o atormentam. “Quem sou eu? Porque estou aqui? Para onde vou? O que é a Vida?” Para responder a essas perguntas é obrigado a questionar-se. E questionar-se significa inquietude, quase sempre sofrimento. Por isso, prefere muitas vezes criar um mundo que actua como muro à sua volta, um mundo que pareça responder a todas essas perguntas e que o impeça, que o proíba mesmo, de procurar outras respostas. E isso porque prefere o medo conhecido que esse muro lhe inflige ao medo que a procura das verdadeiras respostas lhe suscita.  

-       É por isso que temem a floresta e as águas do lago?  

-       Sim! A floresta é como um muro construído pelos homens da tua aldeia, alicerçado num medo já familiar, domesticado durante gerações, um muro que esconde o lado de lá, o lado da dúvida e da incerteza.  

-       E o rei de que falam então não existiu?  

-       Existiu. Quase todas as histórias têm uma parte alimentada de verdade. Há muito tempo atrás esse rei ambicioso a quem não bastava o dinheiro que extorquia dos seus súbditos mandou chamar todos os feiticeiros do seu reino e de reinos vizinhos para lhe criarem a poção mágica com que pudesse transformar tudo o que olhasse em ouro. Esse rei existiu! Os feiticeiros não conseguiam ou não queriam, quem sabe, produzir essa poção e o rei ameaçou matá-los a todos. Os feiticeiros decidiram então recorrer a um estratagema. Anunciaram a poção mágica e o rei foi convidado para a floresta para a experimentar. Os feiticeiros espalharam a poção na floresta e de repente esta incendiou-se. As chamas espalharam-se rapidamente consumindo à sua passagem prados e bosques. O rei, ao ver as cores ígneas e douradas das chamas que ardiam e consumiam a floresta, batia as palmas, pensando que toda a floresta se transformava assim em ouro. Quando o incêndio finalmente se extinguiu, os caules enegrecidos dos castanheiros, carvalhos, negrilhos e sobreiros emergiam de um chão dourado. O rei correu e feliz, como uma criança, rebolou-se no chão, sobre as ervas secas douradas. Descuidado, rebolou nos fenascos até à margem do lago, caiu nas águas e morreu afogado.  

-       Mas então porquê esse medo da floresta? – Sadim não compreendia.  

-       Porque esta floresta que tu achas tão bela nasceu do fogo. Esta beleza mágica é filha da morte, simbolizada pelo fogo. As árvores negras à volta do lago são cadáveres carbonizados.  O homem não consegue compreender que a morte é parte integrante da vida e tem medo. Tem medo da morte mas dessa forma também tem medo da vida, de uma vida para além da sobrevivência, para além dos muros próximos que encerram dentro os seus medos conhecidos, porque esses muros também barram os caminhos para as respostas às questões que o atormentam – o lago per mane ceu silencioso durante alguns minutos. – Porque a vida não é mais que um fluxo ininterrupto, uma sucessão de ciclos de morte e de nascimentos que a morte proporciona. Ou talvez se possa dizer que a morte afinal não é morte, é parte da vida. Talvez se possa dizer que a morte de facto nunca existiu! – o lago per mane ceu silencioso mais alguns minutos - Por isso, estranhamente, os próprios homens construíram a estátua do rei em ouro e a encerraram no castelo onde, sem saber, o veneram. Os homens, tal como o rei, gostavam de transformar em ouro tudo o que olham para ser felizes, em vez de procurar a felicidade nos caminhos do desconhecido.  

-       E encontra-se a felicidade nos caminhos do desconhecido?  

-       Ninguém pode dizer mas encontra-se com toda a certeza o caminho da procura da felicidade.  

Sadim regressou à aldeia onde contou o que vira, mas ninguém o acreditou e a floresta dourada permanece rodeada por silvados e giestais que protegem os segredos do desconhecido que assustam ainda mais os homem do que a história simples de uma floresta terrível, onde ninguém se atreve a entrar com medo de ser transformado em estátua.  

2003 Renato Roque