A
floresta d’ouro
Na aldeia ninguém se atrevia a entrar na floresta mágica. Tinham medo do brilho que diziam podia cegar as meninas dos olhos. Batiam com as palmas das mãos nas pálpebras fechadas e repetiam alto “T’arrenego, t’arrenego, t’arrenego”, três vezes, de cada vez que alguém mencionava o nome da floresta maldita. Mesmo os campos próximos da floresta dourada eram deixados ao abandono, pasto para matos e giestas, onde nem as cabras mais afoitas se atreviam a roer sustento. As gentes da aldeia contavam uma história antiga de um rei vaidoso e ambicioso que não contente em pedir aos Deuses o toque de Midas, o poder de transformar em ouro tudo aquilo em que tocasse, reclamou o dom extraordinário de transformar em ouro tudo o que visse com os olhos. Os Deuses concederam-lhe o que pedia e cada vez que olhava à sua volta transformava em ouro tudo o que o rodeava. Objectos, árvores, animais e gente foram transformados em estátuas douradas. Em breve o rei estava só, num jardim de esculturas esplendoroso. Esse olhar de Midas matou-o quando, ao aproximar-se de um lago, olhou a sua imagem reflectida pelas águas e se transformou ele próprio numa bela estátua de ouro fundida. A gente da aldeia dizia que o olhar poderoso do rei tinha sido engolido pela água do lago e quem se atrevesse a olhar a sua imagem reflectida por essas águas terríveis seria transformado também numa escultura dourada.
Mas uns dias mais tarde o
Zarolho voltou a fugir ao dono e a perder-se mais uma vez no mato perto da
floresta. Sadim lembrou-se das ameaças do pai mas não foi capaz de deixar
morrer o animal e entrou de novo no giestal, munido de um cajado e de uma faca,
à procura do Zarolho. Desta vez não foi tão fácil encontrá-lo. Sadim
gritava o nome de Zarolho e avançava a custo num giestal tão denso que por
vezes, rodeado de gestas e silvas, pensava que ele próprio estava prisioneiro
do mato, perdido para sempre. Mas tinha bom sentido de orientação e ajudado
pelo pau e pela faca, prestando atenção ao ganir aflito do cachorro à distância,
lá acabou por descobri-lo. Mas dera tantas voltas que ao tentar regressar,
apesar do seu bom sentido de orientação, por engano abriu caminho na direcção
da floresta, em vez de tomar a direcção da aldeia. E por isso ao fim de muito
tempo, de avanços e recuos causados pela densidade da vegetação, não
conseguia encontrar a saída para voltar para casa. E a noite caiu e Sadim
apavorado no breu da noite sem lua, agarrado ao Zarolho, procurou o conforto de
uma cama feita de fetos e de gestas.
O sono foi intermitente,
entrecortado por imagens quase reais criadas pelo medo. Imagens de bestas e de
seres terríveis que o ameaçavam e o obrigavam a fugir. Na fuga as gestas
fustigavam-lhe a cara até atingir uma clareira e mergulhar nas águas geladas
de um lago dourado, onde paralisava, transformado em metal frio.
Na manhã seguinte acordou a
tremer de frio e apalpou os braços para comprovar que ainda eram de carne e
osso. O Zarolho viu-o abrir os olhos e lambeu-lhe a face de contentamento. Ao
olhar à sua volta Sadim verificou então que estava mesmo no limiar da floresta
proibida. À sua frente, a poucos metros, uma paisagem deslumbrante, dourada,
como nunca tinha visto, era ao mesmo tempo bela e aterradora. Per
- Onde te meteste? O teu pai saiu ontem ao fim do dia como um doido à tua procura. Levou o Saloio com ele e ainda não voltou!
Sadim teve de contar à mãe o
que lhe acontecera. A mãe ouvia e de vez em quando repetia os “T’arrenego!”
da tradição e “Meu Deus! Meu
Deus!” e levava as mãos à cabeça. No fim da narrativa sobressaltada de
Sadim, a mãe só temia pela reacção do pai. Muitas vezes o tinha visto fora
de si e quando isso acontecia nada de bom se podia esperar.
-
Vamos ter de inventar uma história para contar ao teu pai. Vamos
dizer-lhe que tropeçaste quando regressavas da nossa leira e que bateste com a
cabeça numa pedra e que só acordaste esta manhã.
-
E o pai acredita? Com certeza que me procurou no caminho da leira.
– perguntou o Sadim a quem desagradava ter de mentir, pois ao fim e ao cabo se
tinha desobedecido ao pai fora para salvar o Zarolho e considerava que não
merecia castigo forte. Mas o pai era um homem justo mas duro, por vezes quase
cruel, e ele sabia-o bem.
-
Vai ter de acreditar! – disse-lhe a mãe e encaminhou-o para
junto da lareira, onde lhe entregou um prato de sopa fumegante e um naco de pão
barrado com azeite que ele engoliu sofregamente. Só nesse momento se apercebeu
da fome que tinha. O Zarolho pôs-lhe as patas nos joelhos e emitiu pequenos
sons de submissão e ele foi-lhe dando pequenos pedaços gordurosos de miolo.
Quando o pai chegou,
desesperado depois de uma noite de busca infrutífera e deu de caras com o filho
sentado à beira da lareira junto à mãe, pareceu que era capaz
de o desfazer, pois adivinhava o que acontecera. O Zarolho saltou do colo
de Sadim e correu a esconder-se por debaixo do móvel desconjuntado no canto da
cozinha, onde se arrumavam os poucos cacos da família. Mas a mãe imediatamente
protegeu o filho atrás de si e desfiou ela a história que preparara tão bem
como soubera, enquanto esperara. Uma história mal alinhavada acerca de um lobo
e de uma fuga precipitada de Sadim, trepando a um carvalho, onde fora obrigado a
passar a noite. O pai, mal convencido, virou-se, berrou um conjunto de palavrões
e saiu novamente, batendo a porta atrás de si.
Sadim lembrava-se desse dia
como se fosse hoje. Aquele dia mudara a sua vida e ele ao ver o pai sair, sabia
já que um dia, quando fosse um homem feito, iria voltar à floresta. Não sabia
porquê, só sabia que o faria porque tinha que o fazer.
Após a segunda fuga de
Zarolho Sadim não mais se aproximou da floresta, até sentir que o dia da
visita chegara.
O Zarolho crescera e
tornara-se um cão meigo e preguiçoso que o acompanhava para todo o lado e que
nunca se afastava mais de alguns metros. O pai envelhecera. A maleita que o
tolhera dera rapidamente cabo dele. Nos últimos tempos
antes de morrer já não era o mesmo homem. Sadim preferia recordar o
homem duro àquele farrapo que se arrastava da cama para o escano, da vida para
a morte. A mãe continuava a mulher atarefada que sempre conhecera, embora já
lhe custasse dobrar o corpo para mexer a ceia nos potes de ferro, ao lume.
Sadim regressava finalmente à
floresta. Como tinha compreendido naquele dia longínquo, como se um feitiço
antigo germinasse dentro dele e lhe comandasse os pés.
Abriu caminho no giestal como
fizera em garoto, com um cajado e uma faca de mato, até atingir a orla da
floresta proibida. Olhou e quase não hesitou pois a decisão era antiga e
estava já enterrada bem fundo. Caminhou devagar, sempre muito devagar, pois
queria olhar e ver tudo à sua volta. Parecia mergulhar numa câmara de silêncio
amplificado. Parecia-lhe ouvir o som do seu próprio corpo, como se os seus
ossos, ligamentos, músculos gerassem sons inaudíveis que ele recebia. Os pés
assentavam numa erva d’oiro, fofa e macia, que lhe amortecia o andar.
Baixou-se, com delicadeza abriu as duas mãos e tocou ao de leve com as palmas
abertas aquela erva rendada, enfeitada pelas gotas de orvalho, que lhe fez cócegas
e que vibrou, como que agitada por uma mola mecânica. A sensação era
extraordinária, como que tocar as nuvens ou a neve fria, depois de um nevão.
Ao mesmo tempo sentiu uma sinfonia de cheiros, todos os cheiros que tão bem
conhecia, o cheiro da terra, o cheiro da palha, do orvalho, da hortelã e do
rosmaninho, alguns não conseguiu identificar, só lhes identificou o tempo e
era um tempo de há muito. Ergueu-se novamente e continuou a caminhar. O caminho
era ladeado por árvores de tronco e ramos quase negros que realçavam o dourado
do trilho. De onde a onde despontavam manchas de verde, mas era um verde
diferente daquele que ele conhecia dos campos da aldeia. Era um verde brilhante,
a rimar com o dourado do chão onde se vertia. Sadim não sabia se passou muito
se pouco tempo. De repente abriu-se uma clareira larga, ladeada de arbustos também
dourados, e do outro lado viu o lago.
Sadim aproximou-se devagar,
temeroso. As histórias das gentes da aldeia passaram-lhe rapidamente pela cabeça.
Na margem, colocou a mão direita no tronco escuro e rugoso de um castanheiro
vetusto, debruçou-se e viu-se reflectido pelas águas. Olhou para a mão
esquerda e aproximou-a dos olhos, como num efeito de ampliação, para confirmar
que se não transformara em estátua. A mão, o braço e os pelos eriçados,
dourados pelo sol, pareciam não ter sido afectados. Sadim sorriu.
-
Mas afinal porque contam todas aquelas histórias? – perguntou
em voz alta Sadim.
-
Porque quase sempre o homem prefere conviver com o medo conhecido
a ter de enfrentar o desconhecido.
Sadim, espantado, olhou à sua
volta. Parecia ter sido o lago que respondera. Era impossível. É verdade que a
voz parecia ter soado dentro da sua cabeça, mas como que ecoada a partir das águas
do lago. Era uma voz que quebrava o silêncio imponente, mas sem o romper. Não
conseguia explicar melhor, porque não conseguimos explicar aquilo que é novo.
-
Lago, és tu que falas comigo? – perguntou, olhando à sua volta
instintivamente, confirmando que não havia ninguém.
-
És!
Sadim não falou durante algum
tempo. Olhava as águas espelhadas do lago que reflectiam as copas nuas das árvores
à volta.
-
Que querias dizer quando afirmaste que o homem prefere conviver
com o medo? – perguntou finalmente.
-
O homem prefere conviver com os medos que conhece, com os seus
medos domesticados, os seus fantasmas educados. O homem não consegue viver sem
responder às perguntas que o atormentam. “Quem sou eu? Porque estou aqui?
Para onde vou? O que é a Vida?” Para responder a essas perguntas é obrigado
a questionar-se. E questionar-se significa inquietude, quase sempre sofrimento.
Por isso, prefere muitas vezes criar um mundo que actua como muro à sua volta,
um mundo que pareça responder a todas essas perguntas e que o impeça, que o
proíba mesmo, de procurar outras respostas. E isso porque prefere o medo
conhecido que esse muro lhe inflige ao medo que a procura das verdadeiras
respostas lhe suscita.
-
É por isso que temem a floresta e as águas do lago?
-
Sim! A floresta é como um muro construído pelos homens da tua
aldeia, alicerçado num medo já familiar, domesticado durante gerações, um
muro que esconde o lado de lá, o lado da dúvida e da incerteza.
-
E o rei de que falam então não existiu?
-
Existiu. Quase todas as histórias têm uma parte alimentada de
verdade. Há muito tempo atrás esse rei ambicioso a quem não bastava o
dinheiro que extorquia dos seus súbditos mandou chamar todos os feiticeiros do
seu reino e de reinos vizinhos para lhe criarem a poção mágica com que
pudesse transformar tudo o que olhasse em ouro. Esse rei existiu! Os feiticeiros
não conseguiam ou não queriam, quem sabe, produzir essa poção e o rei ameaçou
matá-los a todos. Os feiticeiros decidiram então recorrer a um estratagema.
Anunciaram a poção mágica e o rei foi convidado para a floresta para a
experimentar. Os feiticeiros espalharam a poção na floresta e de repente esta
incendiou-se. As chamas espalharam-se rapidamente consumindo à sua passagem
prados e bosques. O rei, ao ver as cores ígneas e douradas das chamas que
ardiam e consumiam a floresta, batia as palmas, pensando que toda a floresta se
transformava assim em ouro. Quando o incêndio finalmente se extinguiu, os
caules enegrecidos dos castanheiros, carvalhos, negrilhos e sobreiros emergiam
de um chão dourado. O rei correu e feliz, como uma criança, rebolou-se no chão,
sobre as ervas secas douradas. Descuidado, rebolou nos fenascos até à margem
do lago, caiu nas águas e morreu afogado.
-
Mas então porquê esse medo da floresta? – Sadim não
compreendia.
-
Porque esta floresta que tu achas tão bela nasceu do fogo. Esta
beleza mágica é filha da morte, simbolizada pelo fogo. As árvores negras à
volta do lago são cadáveres carbonizados.
O homem não consegue compreender que a morte é parte integrante da vida
e tem medo. Tem medo da morte mas dessa forma também tem medo da vida, de uma
vida para além da sobrevivência, para além dos muros próximos que encerram
dentro os seus medos conhecidos, porque esses muros também barram os caminhos
para as respostas às questões que o atormentam – o lago per
-
E encontra-se a felicidade nos caminhos do desconhecido?
-
Ninguém pode dizer mas encontra-se com toda a certeza o caminho
da procura da felicidade.
Sadim regressou à aldeia onde
contou o que vira, mas ninguém o acreditou e a floresta dourada per
2003