Mnemodisseia

 

Todas as noites dobrava a roupa sobre a cadeira. Depois retirava com cuidado as sobrancelhas, os olhos, a boca, os sinais… até dispor o rosto em cima da escrivaninha, vigiado pelo espelho de pescoço esticado e moldura de pau-santo. Apreciava o sono despojado mas sentia haver outra razão para se deitar subtraído a si mesmo. Talvez o medo de ser reconhecido nessa imprevisível região dos sonhos, sabe-se lá por quem e com que implicações. Preferia evitar na memória todo e qualquer traço desse voo ou cavalgada nocturna.

Suspensa a indumentária, tacteava o caminho para a cama. De manhã fazia o mesmo, ao contrário. Recomeçava ordenadamente, como quem segue o manual instruções. Mas, uma vez colocado o olho director, a dúvida sondava. E agora, a boca ou o nariz? E a seguir?... Desencadeava-se o jogo. Parodiava os ciclopes (e se saísse à rua de olho na testa?), o merceeiro do quarteirão (e esta sobrancelha no lugar do bigode a pente fino?). Por fim normalizava o semblante, parodiando-se a si próprio. E saía, afinando o passo, na rua, pela certeza das aparências.

Para se especializar no seu despojo diário recorreu primeiro aos melhores tupperware encontrados na cozinha. Depois folheou catálogos, correu o comércio. Resignou-se, por fim, a gastar um pouco mais na encomenda. Considerou engenheiros, ourives, cientistas, mas decidiu-se pelo agente funerário (quem trata assim dos mortos merece a confiança dada em excesso a quem trata dos vivos). Fez a ginástica necessária para esconder a função e foi bem sucedido. Chegou a empalidecer quando o agente falou a despropósito nos romanos, nas máscaras, etc (erudição comercial, concluíu). Levou para casa uma espécie de guarda-jóias capaz de arquivar o seu rosto até à mais pequena erupção cutânea.

Um dia acordou, pela primeira vez, com a lembrança do sonho que tivera: barulho de portas e gavetas. Mas, quando sentiu que uma brisa andava à solta como se a casa estivesse escancarada, correu à escrivaninha e apalpou um vazio. Agitou desordenadamente os braços porque não podia arregalar os olhos, deu murros sem poder gritar nem franzir o sobrolho. Correu a casa como se percorresse a palma da mão. E o pior foi depois da porta, escada abaixo e rua fora: porque não via nada, porque os outros o viam sem lhe ver as feições. À sua passagem ouviu gritos, exclamações, comentários. Foi amparado, empurrado, conduzido. Caiu, bateu, rodopiou, desceu. Chegou, por fim, à frieza e silêncio de um sítio, digamos, final. De pernas quebradas e peito arquejante, escorregou pela parede fria até à rigidez do chão. Ouvia rumores do outro lado da parede. “Entra”, disse-lhe uma voz congelada. Sentaram-no e deram-lhe cara nova, esculpindo e pintando, sem dor, uma espécie de prémio que não entendia. “Não te voltes”, disseram-lhe no fim, abandonando a sala. Pelo espelho viu dois desconhecidos. O primeiro, ele próprio, pois não se reconheceu. O outro, pouco diferente de si mesmo (daquilo que era agora): jovem, de traços finos, como que desenhados por uma eternidade bem afiada. Sentava-se numa escrivaninha igual à sua e remexia uns papéis sem deixar marcas. Mais atrás, numa parede impecavelmente pintada, uma tela perturbadora. Tudo nela era tinta, textura, empaste, raspagem, escorrido. Aos poucos foi percebendo uma forma humana descarnada. “Um retrato meu…”, disse o outro, adivinhando os pensamentos dele “… que mais valia estar, como os outros, enterrado aí em qualquer museu”. “Mas, então, tu és…”, disse, com o dedo indicador a procurar no vazio. “Nem digas!”, ordenou o outro. “Então é para isso que aqui estou?”, perguntou, “para um retrato? Uma pintura?”, inquiriu sem tirar os olhos do espelho. “Não, uma fotografia”, disse-lhe o outro (como se já ninguém quisesse pintar nem ser pintado).

A luz ofuscante do flash devolveu-lhe a rua. Começou a andar a passo lento como quem precisa de tempo para fazer bem as perguntas. Acabou por regressar, caminhando como se a casa estivesse do outro lado do mundo. Sentado à escrivaninha, tocou a face com a ponta dos dedos, experimentou retirá-la. Mas era impossível removê-la. Levantou-se e começou a andar em círculos, parando de vez em quando para olhar o espelho. Quis desenhar no semblante o ar grave que lhe enchia os pulmões mas nada se alterava, nem uma prega, nem um sinal de afectação. Tocou o telefone. Tinham encontrado o suspeito, era chamado a identificá-lo. Ocorreu-lhe dizer que não o tinha visto, que dormia durante o assalto, etc, mas achou melhor calar-se. Entrou no departamento e deu de caras consigo próprio, quer dizer, com alguém com as suas feições, a ser fotografado de frente, de lado, de costas. E, quando teve que falar, disse com o seu novo ar apolíneo, mas com as mãos crispadas, escondidas nos bolsos: “Não, não é ele”. Custava-lhe que uma só das suas sobrancelhas enfrentasse o cárcere ou que os seus olhos vissem de frente a cadeira eléctrica (sabe-se lá que condenações inspirava a conduta daquele impostor). Saiu e ficou à espera, do outro lado, no café. Queria dizer-lhe “isto não fica assim”, mas não o viu sair e já era escuro quando desistiu. Nessa noite encontrou o suspeito em sonho e aconteceu aquilo que sempre temera: ser reconhecido. Desde então, não há sonho que não lhe ocupe a memória o dia inteiro. Mas, por mais que contemple a fotografia que traz no bolso, não se lembra de quem é. Parece-lhe ter nas mãos um daqueles ditadores fotografados de frente, cujo semblante de ninguém conquista a confiança popular, envergando o slogan “dar a cara pela eternidade”.

 

 

 Elliot Rain [tradução de Emílio Remelhe] 2009